Por Fernanda Sypniewski
As memórias da poetisa Hilda Doolittle (H.D. – 1886-1961) foram originalmente publicadas nos Estados Unidos em 1956 e, mais de vinte anos depois, em 1977, na França. Apenas em 2012 tivemos a primeira edição no Brasil. Nela, encontramos cartas então inéditas de H.D. a Freud, assim como algumas fotografias, descobertas nos arquivos da Biblioteca Beinecke, da Universidade de Yale. Além das cartas a Freud, pode-se ler parte da correspondência da poeta com a escritora Bryher (Annie Winifred Ellerman, 1894-1983), sua companheira – textos que colocam em perspectiva a análise de Doolittle e sua escrita.
“Mas não – ele não colocava armadilhas, ele realmente não lançava redes. Era eu mesma, por minha própria volição subsconsciente ou vontade inconsciente, que caminhava ou voava para dentro delas. Eu enfatizava demais ou compensava demais; eu insistia propositadamente e dolorosamente certos eventos do passado sobre os quais não estava nada feliz, para que não parecesse que estava me esquivando da análise ou tentando trapacear o registro do Livro da Vida, para enganar o Anjo Registrador, com efeito, num esforço de escapar do Juízo Final” (p.61-62).
A edição brasileira é dividida em três partes. Advento, a primeira, foi redigida durante a análise de Hilda Doolittle com Freud durante a estadia da poeta em Viena, entre março e junho de 1933. Escrito na parede, a segunda, é a narrativa dessa mesma experiência reconstruída onze anos depois e publicada pela primeira vez em 1956, sob o título Tribute to Freud.

Retratos fotográficos de Freud e Doolittle. Imagens: Brittanica.com
Em seus relatos até aqui, há apenas pequenos vislumbres dos eventos que varriam a Europa nos anos 1930. Em Advento encontramos a ascensão do nazismo e em Escrito na parede há a menção ao extermínio dos judeus. No prefácio, a psicanalista Elisabeth Roudinesco nos alerta: “o que domina de uma ponta a outra nesses dois momentos narrativos é o prazer de um mergulho interminável nas delícias do sonho e da memória”. Os dois textos tratam de conversas e interrogações entre uma poeta e um mestre do inconsciente: “uma conta seus sonhos e o outro os interpreta misturando as coisas da realidade aos atos de palavra” (p.11).
“Em Viena, as sombras já estavam se estendendo, ou a maré subindo. No entanto, os sinais anunciadores de eventos lúgubres se manifestavam de forma curiosa. Havia, por exemplo, chuvas ocasionais sedutoras, como se fossem confetes, de suásticas de papel dourado e tiras estreitas de papel impresso como aquelas que puxávamos de nossos bombons de Natal (…). Certa manhã, parei para pegar um punhado desses “confetes” ao sair do hotel Regina. Estavam impressos naqueles conhecidos pedaços oblongos e pequenos de papel fino que caíam do tubo quando era aberto na festa; nós os chamávamos de slogans. Esses slogans eram bem curtos e brilhantes e objetivos. Lia-se em nítido alemão de cartilha “Hitler dá pão”, “Hitler dá trabalho” etc (p.86)”.
“Havia outras suásticas. Agora eram as de giz; eu as segui pela Berggasse como se tivessem sido desenhadas na calçada espacialmente para mim. Elas me conduziram à porta do Professor – talvez seguissem para a outra rua até outra porta, mas não olhei adiante. Ninguém apagou essas suásticas. Não é muito fácil apagar caveiras de giz de uma calçada. Não é tão fácil e chama mais a atenção do que varrer papel dourado para um esgoto. E isso foi um pouco depois. (p.87)”.
A última parte é composta pelas cartas de Freud a Hilda. Elas foram escritas em dois momentos: entre dezembro de 1932 e março de 1933, quando H.D. chegou a Viena e iniciou sua análise; e do final da análise de H.D. até a morte de Freud, em 23 de setembro de 1939, em Londres. Já as cartas de H.D. para Freud datam de 06 de junho de 1938, quando da chegada do psicanalista em Londres. A correspondência entre Doolittle e Bryher dizem respeito aos dois períodos de sua análise com Freud: vão de 1º de março até 15 de junho de 1933 e, depois, de 29 de outubro a 2 de dezembro de 1934. Essas trocas de mensagens do casal foram selecionadas e incluídas no volume a partir de Analizing Freud, Letters from H.D., Bryher and Their Circle (New Directions, 2002).


Imagem: Sigmund Freud Papers: General Correspondence, 1871-1996; Doolittle, Hilda, sem data.
A escrita íntima faz parte da história da psicanálise. O próprio Freud escreveu, e muito. Ele manteve diversos correspondentes ao longo da vida, dentre os quais seus seis filhos, amigos, colegas psicanalistas e, como vimos, alguns pacientes. Suas correspondências são uma fonte de conhecimento à parte. A leitura desses registros nos permite conhecer o homem Sigmund, para além dos casos clínicos e dos textos metapsicológicos. Estima-se que o pai da psicanálise tenha escrito cerca de 20.000 cartas. Dessas, apenas 4.200 foram publicadas e algumas ainda estão em sigilo nos Arquivos de Freud. Nesse sentido, os relatos de Hilda Doolittle são uma pequena preciosidade.
Serviço
Por Amor a Freud: memórias de minha análise com Sigmund Freud, de Hilda Doolitttle
Ed. Zahar, 2012

