O Eu não é senhor na própria casa: o inconsciente na vida psíquica

Por Fernanda Sypniewski

Em 1916, Sigmund Freud publicou as primeiras Conferências Introdutórias à Psicanálise. Esse trabalho teve uma circulação maior do que qualquer outra de suas obras, com exceção, talvez, de A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). As conferências publicadas foram proferidas em dois períodos de inverno durante a Primeira Guerra Mundial: 1915-1916 e 1916-1917. As Conferências Introdutórias podem ser consideradas como um inventário da teoria e da posição da psicanálise no período da 1ª G.M. A realização dessas 28 conferências foi facilitada pela diminuição do trabalho clínico de Freud, situação imposta pelas condições bélicas do período.

Na conferência 18, “A fixação no trauma, o inconsciente”, há duas pequenas histórias clínicas: uma senhora e uma jovem de 19 anos apresentavam sintomas obsessivos e ritualísticos, sintomas estes que lhes causavam alguns infortúnios. Freud se questiona, então, por quais motivos uma pessoa assume uma postura tão singular e desvantajosa diante da vida. Com isso, ele pressupõe que tal comportamento seja uma característica geral de toda neurose, e não uma peculiaridade dessas duas pacientes.

No final da análise delas, Freud expõe os resultados de seu trabalho e pontua algo importante para a teoria psicanalítica: o paciente, enquanto repete seu ato obsessivo, nada sabe sobre a relação do sintoma atual com uma vivência do seu passado: essa conexão permanece oculta. Portanto, existem coisas que não chegam ao conhecimento da consciência. Pode-se identificar, a partir disso, a existência de processos inconscientes na formação dos sintomas. 

A psicanálise dá ênfase aos efeitos do inconsciente na vida psíquica. Desde Freud, isso desperta diversas críticas contra ela. Essa resistência ao trabalho psicanalítico é facilmente respondida por Freud: para ele, isso é apenas mais um dentre os insultos feitos pela ciência ao amor-próprio da humanidade.

O primeiro, segundo ele, ocorreu quando Copérnico, no século XVI, defendeu a teoria de que a terra se move em torno do sol e não o contrário. O segundo foi quando a ciência mostrou, via Darwin, que os homens descendem dos macacos. O terceiro grande insulto que a grandeza humana sofreu se deveu às pesquisas psicológicas, onde o Eu não é senhor de sua própria casa, porém deve se satisfazer com parcas notícias do que se passa inconscientemente em sua psique. Para Freud, esse terceiro insulto explicaria a revolta contra a psicanálise.

Chegamos aqui num ponto importante para toda a teoria psicanalítica. Para ilustrar sua teoria do ‘o Eu não é senhor na própria casa’, Freud recorreu a elementos da cultura, com destaque para a tragicomédia O Anfitrião, escrita pelo dramaturgo romano Plauto entre 205 a.C. e 184 a.C.


O Anfitrião é a única peça de tema mitológico escrita por Plauto. Nela, o autor explora a lenda grega em torno da sedução de Alcmena por Júpiter (ou Zeus) que desencadeia a geração de Hércules, o semideus. Como se sabe, um dos recursos utilizado pelo Deus dos Deuses para a sedução de mulheres era a metamorfose. Para conquistar Alcmena, Zeus assumiu a forma humana: a de Anfitrião, o general de Tebas com quem ela era casada, mas que estava ausente combatendo os teléboas. 

Na versão de Plauto, a transformação engendrada por Júpiter torna-se dúplice, pois foi contemplada por outra duplicação divina: o filho de Júpiter, Mercúrio (ou Hermes) transformou-se no escravo de Anfitrião, conhecido por Sósia. O humor dessa comédia está no encontro entre o Sósia verdadeiro e seu duplo olímpico, e o aspecto cômico está em haver dois pares idênticos, que ao agirem provocam todo o tipo de mal-entendidos e equívocos. Tal como o Eu se relaciona com os processos psíquicos, insinua Freud.

A peça é iniciada com o retorno de Anfitrião para Tebas. É importante destacar que quando seu marido partiu para a guerra, Alcmena já estava grávida. É durante essa viagem que Júpiter, disfarçado de Anfitrião, também engravida Alcmena. Tanto Júpiter quanto Mercúrio se aproveitam de seus poderes para zombarem dos outros três humanos, divertindo assim os espectadores. 

Em 1917, Freud retoma o tema das ofensas e acrescenta que a terceira, aquela de natureza psicológica, foi a mais sentida pela humanidade. Embora o homem estivesse humilhado pelas outras duas descobertas, ele continuou sentindo-se o soberano de sua própria psique. Há algo no âmago de seu Eu que vigia seus impulsos e ações, para que coincidam com suas exigências. A percepção interna do Eu, a consciência, informa-o sobre todos os eventos significativos da atividade psíquica, e a vontade, orientada por essas notícias, executa o que o Eu ordena, modificando o que tenderia a realizar-se autonomamente. 

Para a psicanálise, a psique não é algo simples, mas uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas. Ali, transitam diversos impulsos que, independentes uns dos outros, lutam por suas realizações. Esse funcionamento requer que a instância mais alta tenha conhecimento de tudo o que se prepara, e que sua vontade possa prevalecer. O Eu, portanto, se sente tão seguro dessa completude de informações quanto da viabilidade de suas ordens. 

Nas neuroses, o Eu se depara com limites a seu poder em sua própria casa, a psique: surgem pensamentos que não sabe de onde vêm, tampouco se sabe como expulsá-los. A psicanálise busca esclarecer essas inquietantes doenças, para poder dizer ao Eu: nada de estranho se introduziu em você, sua luta não é contra um inimigo externo; uma parte de suas forças psíquicas se opôs de tal forma e tornou-se independente de você, tomou seus próprios caminhos a fim de escapar do recalque, e criou seus próprios direitos.

O que chega ao conhecimento do Eu, assim, é apenas o resultado desse trabalho: o sintoma percebido como sofrimento. O Eu acredita saber tudo o que de relevante se passa em sua mente, já que a consciência o informa a respeito disso. Aqui está um ponto muito importante para toda a psicanálise: o que é mental não coincide com o que é consciente. As informações da consciência são incompletas e, frequentemente, suspeitas. 

Esse é o ensinamento da psicanálise ao Eu: os processos mentais são inconscientes em si e apenas acessíveis e submetidos ao Eu através de uma percepção incompleta e suspeita, o que equivale a afirmar que o Eu não é senhor na própria casa. 

Uma resposta para “O Eu não é senhor na própria casa: o inconsciente na vida psíquica”.

  1. […] A descoberta do inconsciente foi, segundo Freud, um dos grandes insultos ao amor-próprio da humanidade, e talvez a mais sentida. Embora o homem estivesse “humilhado exteriormente, o homem sente-se soberano em sua própria psique”.  Afinal, “o Eu não é senhor na própria casa”.  […]

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