Por Daniel Felipe
A estreia literária do poeta, biólogo e pesquisador Guilherme Schnell e Schühli é fruto de um espaço-tempo pitoresco, como ele próprio avisa no prólogo de sua obra “A Cidade se Conserva em Vinagre” (Entre Capas, 2020). Para ele, a preservação da memória, necessária, parece guardar também um sabor agridoce: “nada mais natural e paranoico do que conservar as coisas em frascos rotos”.
“Nas esquinas o tempo se preserva no azedo do frio, da caligem que por vezes nos oferece na vista cerrada a silhueta do passado. Quase um assombrado, o cidadão não sabe se o azedo é a receita final ou o caminho pelo qual suas fotografias mentais se manterão no vidro”.
A cidade em questão é Curitiba, com seus cidadãos de bem, seus odores, hálitos de onça e chorumes, que contrastam com o verde da publicidade oficial, com suas sacolas recicláveis. “Um choque severo esparrama / Suja de pó, de latrina, lama / Minha verdade encontra a calçada, rápido segundo”, verseja o autor, para quem a verdadeira Rua das Flores se localiza no Aterro da Caximba.
Por trás da imagem poética de uma despensa lotada de conservas, que exprime as estratégias para “sobreviver a uma guerra que já passou”, de uma cultura em grande parte composta por imigrantes que fugiram dos conflitos globais do século passado, o leitor encontra poemas dotados de um humor sutil, de se rir com os cantos da boca.
Nessa direção, os versos, livres, transitam pela convencionalidade do território conservador, dando vazão a uma sintaxe particular. Schühli olha para a cidade de modo similar a um cientista desbravador que, em meio à mata fechada, se emociona com a paisagem.
No projeto estético desse livro, a poesia nasce da necessidade de se guardar o tempo, o que em alguma medida convive com o aspecto antinatural de se ficar preso ao passado — daí um olhar do autor para certo viés algo ridículo da cultura na qual está inserido, que se conserva em vinagre (também poderia ser em formol) e onde o eu lírico mastiga nostalgias com cheiro de naftalina.
Como se lê em “Cortejo”:
“por trás de tudo
evisceram desejos
de enterrar de novo
o que resta de ontem”
Conforme o livro se aproxima do fim, a relação afetivo-crítica com a cidade cede um pouco de espaço para um lirismo que adentra e examina a esfera íntima. Destaque para o “Braile” que ocorre em meio a uma dança, a partir do qual a voz poética circunda uma cintura num “erro coreográfico”. Uma beleza.
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Serviço
A Cidade se Conserva em Vinagre (poemas), de Guilherme Schnell e Schühli
Editora: Entre Capas, 2020

