Por Daniel Felipe
Sempre que uma nova temporada de Black Mirror chega ao serviço de streaming Netflix, há uma expectativa implícita no ar: qual nova luz a série potencialmente jogará na contemporaneidade? Um contemporâneo que se revela, diga-se, em cada um de seus episódios, como uma verdadeira distopia tecnológica.
No caso desta sexta temporada, o episódio de abertura tematiza justamente uma série veiculada em um serviço de streaming, o que por si só já é capaz de despertar atenção, na medida em que coloca em xeque o próprio sistema produtivo no qual Black Mirror está inserida.
O episódio em questão é “Joan is Awful” (“A Joan é Péssima”). No enredo, uma executiva chega em sua casa e se depara com uma reprodução do seu dia sendo exibida pelo streaming “Streamberry”, que usa a identidade visual da própria Netflix.
A produção que copia a vida de Joan é estrelada pela atriz Salma Hayek. Há, portanto, de início, uma diegese em dois níveis, e a presença de Hayek funciona como um signo dúbio, interpretando a Joan do Streamberry e a si mesma. Essa dubiedade traduz um olhar do roteiro bastante pertinente para a construção das representações do eu no contexto da cultura digital. A Hayek do streaming fictício, aliás, sequer interpreta: sua “atuação” ocorre inteiramente via CGI.
Ao longo de pouco mais de 50 minutos, as oposições entre “vida real” da diegese e personagens ficcionais vão se embaralhando, sobretudo a partir da tomada de consciência da Joan “real” (a “Annie Murphy, de Schitt’s Creek”) sobre a exibição de sua vida na forma de episódios seriados.
Do ponto de vista do roteiro, as premissas que sustentam o episódio são ao mesmo tempo oportunas e frágeis. Por mais que a história da personagem tenha uma atualidade absurda, colocando em primeiro plano discussões sobre leituras de termos de uso de plataformas digitais, a construção do pacto ficcional que a sustenta só pode ser levada a sério no momento de clímax — quando, nos minutos finais, o ator Michael Cera entra em cena, novamente evocando uma presença dúbia tal qual a de Salma Hayek.
Do ponto de vista da discussão tematizada, o debate levantado pelo episódio, ainda que atual, soa até um pouco tardio e menos brilhante em relação a um episódio da animação South Park lançado em 2011, mesmo ano da temporada 1 de Black Mirror. Trata-se de “CentIpad Humana”, no qual o personagem Kyle aceita os termos de uso da Apple sem os ler e, por conta disso, tem seus lábios costurados junto ao ânus de um homem, e seu ânus costurado junto à boca de uma mulher, tornando-se parte de um novo modelo de Ipad.
No contexto interno de Black Mirror, a oportunidade de adentrar profundamente em questões relevantes do streaming — como a homogeneização do gosto e a reificação da experiência estética, moldada para espectadores que, inertes, consomem em looping — foi deixada de lado.
Longe do brilhantismo de episódios como “Quinze Milhões de Méritos” (anterior à chegada da série na Netflix) e “San Junipero” (posterior à entrada na plataforma), a história de Joan não é capaz de gerar grande reflexão sobre a vida digital a ponto de nos fazer olhar para a vida fora das telas e difundir uma vez mais a expressão “isso é muito Black Mirror”. Pelo contrário, essa narrativa é “muito original Netflix” — e com isso entenda-se a construção pré-fabricada do gosto.
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Serviço
“Black Mirror” – Temporada 6, episódio 1: “Joan in Awful”
Roteiro/Showrunner: Charlie Brooker
Direção: Ally Pankiw

