Além da Sessão: a homossexualidade feminina e vida de Sidonie C

Por Fernanda Sypniewski

Ao longo de seus 83 anos de vida, Freud publicou cinco grandes histórias clínicas, que se tornaram os casos paradigmáticos da clínica psicanalítica, tanto por seus sucessos quanto por seus impasses. São eles: Dora, Hans, Homem dos Ratos, Schreber e Homem dos Lobos. Entretanto, esses não são os únicos casos clínicos descritos por Freud, além dos casos apresentados em Estudos sobre a Histeria (1895), que são de grande importância para o estudo da história da psicanálise e da construção da teoria sobre as neuroses, principalmente da histeria. Temos, ao longo de sua vasta obra, diversos outros (mini) casos, descritos de forma objetiva e curta para exemplificar o tema-geral tratado em determinado artigo. Um desses casos foi publicado em 1920 sob o título “Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina” – tratando (claro) sobre um caso de uma jovem homossexual. 

A homossexualidade feminina, sem dúvida tão frequente tanto a masculina, embora menos ruidosa, tem sido não apenas ignorada pelas leis, mas também negligenciada pela pesquisa psicanalítica. 

Freud a descreve, sem nomeá-la, como uma jovem bela e inteligente de dezoito anos, pertencente a uma família de elevada posição social, que provoca desgosto e inquietação em seus pais pelo carinho com que persegue uma dama “da sociedade”, aproximadamente dez anos mais velha. Os pais, após uma tentativa de suicídio da filha, confiaram ao psicanalista a “tarefa de trazer sua filha de volta à normalidade” (p.117), deixando claro desde a primeira sessão que não aceitavam a homossexualidade da filha. Entretanto, a análise iniciou com um fator desfavorável: a garota não estava doente, não sofria de nada e não se queixava de seu estado. Portanto, a tarefa proposta pelo pai não consistia em resolver um conflito neurótico, mas sim em converter uma variante da organização sexual. 

Aqui é importante ressaltar que um paciente homossexual busca iniciar uma análise, geralmente, por motivos externos, como as desvantagens e os perigos de sua escolha, e não para abandonar sua posição. Podemos presumir então que o motivo que manteve a paciente em análise eram seus pais que estavam em desacordo com suas escolhas amorosas. Esse caso tornou-se um marco para a psicanálise, não só para pensarmos sobre a origem e o desenvolvimento da homossexualidade, mas sobre a relação da menina com a mãe. 

Em 2008 a Companhia das Letras publicou no Brasil a história dessa jovem. A personagem, que no livro se chama Sidonie Csillag, tinha na verdade outro nome. Suas biógrafas Ines Reider e Diana Voigt, aliás, mudaram não apenas o dela, mas também de seus familiares e amigos. A mudança do nome biográfico deveria simbolizar sua origem: Sidonie é um nome tipicamente burguês, e Csillag, que significa estrela, é um sobrenome húngaro tão frequente na cidade de Viena quanto o verdadeiro nome de sua família. 

Sidonie foi uma mulher com uma vida incomum. Ela foi homossexual em uma época em que vigoravam inúmeros tabus e, no decorrer de sua vida, que se estendeu até o final do século XX, testemunhou o auge e a decadência da aristocracia vienense, a devastação do período entre guerras e a caça aos judeus e homossexuais ocorrida na Alemanha nazista. 

Cinco vezes por semana a jovem Sidonie ia até a Rua Berggasse, 19, encontrar seu psicanalista – um homem de quem ela pouco ouviu falar: sabia apenas que ele se ocupava de loucos e podia curar a alma. Ela imaginava que de algo ele devia saber, do contrário seus pais não teriam se empenhado em estar com ele a combinar seu tratamento. Para seus pais, o professor Freud era um excelente especialista e iria conduzi-la de volta à “normalidade”, ao caminho certo para uma mulher. Para Freud, estava claro que o desejo de mudança estava ao lado dos pais, sobretudo do pai. Contudo, ele concordou em receber Sidonie por alguns meses; só após esse período inicial decidiria se uma análise seria possível. 

Aos olhos de sua jovem paciente, Freud era muito sério e inacessível. Ao mesmo tempo, não deixava de ser simpático: “tem uma bonita barba branca e olhos ternos e intensos que a observam interrogadores, quando a cumprimentam ao chegar e na despedida”. Mas, na maioria das vezes, o achava desinteressante; para ela, ele era um homem velho que fazia perguntas desagradáveis e afirmava coisas incríveis. 

Ele havia lhe explicado, no início, que ela estava ali para contar a ele tudo que lhe viesse à memória, cada fragmento de ideia, cada lembrança, cada associação, por mais absurdas que fossem ou pudessem lhe parecer. Além disso, devia anotar seus sonhos, pois eles também eram muito importantes, e conversariam a respeito.  Sobre outros assuntos, ele próprio indagaria. Ela não precisava se envergonhar ou temer, apenas devia falar sobre tudo de forma inteiramente aberta.

Ao fim de sua análise, Freud lhe disse: “A senhora tem os olhos tão astuciosos. Não gostaria de encontrá-la nesta vida como inimigo”. Ao longo de sua vida, Sidonie nunca esqueceu dessas palavras que o famoso Freud lhe disse, quando ela tinha apenas dezenove anos.  

No decorrer da biografia encontramos o cotidiano de uma adolescente frívola, com suas paixões avassaladoras por homens e mulheres, e os conflitos entre se deixar levar por essas paixões ou seguir as convenções sociais e aceitar um casamento de aparências. Com o início da caça às bruxas da Alemanha Nazista, quando a Segunda Guerra já se aproximava, houve o desenvolvimento de uma maturidade forçada . A condição economicamente privilegiada e a conversão ao catolicismo não protegeram a família de Sidonie, de origem judaica, das leis raciais que vigoram na Áustria. Depois de muito resistir, Sidonie deixou Viena, num momento em que a fuga só era possível por meio de uns poucos corredores ainda transitáveis na Europa. Ela não conseguiu seguir para a França junto de seu irmão e de sua mãe; o único caminho possível para Sidonie foi percorrer uma viagem “interminável” e solitária pela Sibéria, passando pelo Japão, até chegar em Cuba. Essa jornada começou em agosto de 1940 e terminou em 27 de dezembro do mesmo ano, quando seu navio entrou no porto de Havana. 

Depois de quase cinco meses de viagem, durante os quais praticamente deu a volta ao mundo, está em seu destino. Ela havia deixado o horror, tinha visto maravilhas e agora, com sua família novamente reunida trazida, como ela, pela marcha da História a esta linda cidade, começa enfim uma nova vida. 

Sidonie no Atlântico, retornando para Viena, maio de 1949

Sidonie retornou para Viena apenas nove anos depois, em 1949, onde reencontrou os seus irmãos, sua mãe e suas amigas, separados por quase 16 anos. 

Através da biografia de Sidonie Csillag, que viveu quase cem anos, as autoras traçam um painel da vida social de Viena fin-de-siècle, e também temos uma pequena parte da história da psicanálise e um olhar de Freud diferente das grandes biografias. 

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Serviço 

Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina”, de Sigmund Freud

Editora: Companhia das Letras, 2011

Tradução de Paulo César de Souza 

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Desejos Secretos: a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud”, de Ines Reider e Diana Voigt 

Editora: Companhia das Letras, 2008

Tradução de Laura Barreto