Por Daniel Felipe
E se, ao ver o mundo com outras lentes, você descobrisse que a humanidade sobrevive adormecida em meio a uma distopia? Esse é o mote de “Eles Vivem”, ficção científica lançada em 1988 que foi escrita e dirigida por John Carpenter, realizador de obras como o primeiro “Halloween” (1978) e “Fuga de Nova York” (1981).
O trabalho é inspirado no conto “Eight O’Clock In The Morning”, escrito em 1963 pelo norte-americano Ray Nelson. O texto literário é curtíssimo, o que permitiu a Carpenter, mais do que meramente adaptá-lo, alimentar-se dele, gerando com isso um diálogo fecundo e uma obra original.
O filme acompanha a trajetória de Nada, interpretado pelo ator de telecatch Roddy Piper. O personagem é um retirante de Detroit que chega em Los Angeles em busca de trabalho. Ele logo consegue, mas até receber seu primeiro pagamento passa a viver em condições precárias, num acampamento urbano junto a outros marginalizados.

Em pouco tempo, Nada percebe movimentações pouco usuais na região, especialmente na igreja em frente ao acampamento. Em sua morada temporária, um aparelho televisor capta um sinal clandestino com mensagens subversivas: “Eles nos fizeram indiferentes a nós mesmos e aos outros. Hoje só pensamos nos lucros. (…) Eles nos mantêm adormecidos e egoístas, nos mantêm sedados”. A mídia, ao mesmo tempo, é elemento de opressão e instrumento potencial para a salvação.

Nesse início de filme, a desigualdade social promovida pelo sistema capitalista é colocada num primeiríssimo plano. Cabem à música e à ambiência espacial gerada pelo registro do caminhar do protagonista pelas ruas, elementos carpenterianos por excelência, lembrar ao espectador de que não se trata de um grande painel dramático: a obra logo mergulhará em gêneros como o suspense e a ficção científica.

Conforme as movimentações se intensificam, Nada adentra a igreja, que em breve será objeto de forte repressão policial. Lá, ele encontra, escondidos como se fossem muamba, uma porção de óculos escuros. Ao fazer uso deles, sua realidade não apenas se transforma, como passam a fazer sentido as frases da transmissão clandestina de televisão.
“Eles vivem, nós dormimos”, lê-se numa mensagem no interior da igreja.
O material das lentes filtra estímulos externos que estão em todos os lugares – mensagens subliminares da publicidade geradora de desejos, das mídias, do capital, do governo, do sistema; chame-se como quiser. E também revela a presença de alienígenas em meio aos humanos. ETs que, em pouco tempo, notam que Nada os percebe, o que gera uma caçada ao humano, a quem resta resistir e combater os recém-descobertos inimigos.


É interessante pensar em como, na obra, tanto publicidade e televisão como extraterrestres se configuram como fatores externos e invasivos, que alteram a percepção da realidade. O sistema domina, oprime, adormece e dopa os cidadãos, segundo o filme. Fugir dessa programação, assim, torna-se um ato de resistência.
Nesse sentido, a mais recordada das cenas de “Eles Vivem”, que gerou até mesmo um comentário do filósofo Slavoj Zizek, diz respeito ao embate entre Nada e Frank (Keith David), o amigo que o abrigou no acampamento e que se recusa a vestir os óculos. A luta é não apenas de Frank versus Nada, mas sobretudo uma briga de Frank com ele mesmo, em sua resistência em sair da cômoda e ilusória inércia alienada, e rumar em direção a uma realidade transformada, muito mais inóspita e desafiante, porém libertadora.
Em vez de ser simplesmente caçado, Nada se torna um membro ativo da resistência, portando armas e abrindo fogo em meio a civis. Essa mudança de postura, geradora de uma intensificação na ação do filme, torna seu protagonista uma espécie de “Rambo” urbano do proletariado.
Ao mesmo tempo em que sua posição social é muito bem demarcada, a simbologia de seu enfrentamento ao inimigo externo invasor flerta a todo momento com certa mentalidade paranoica bastante presente na atualidade, no que se refere à toda sorte de confronto ao que é diferente, ao que vem de fora. Conflitos em geral fundamentados, diga-se, por teorias conspiratórias alienadas e alienantes, alimentadas por um excesso (des)informacional e notadamente afins à extrema-direita.
O mesmo direcionamento segue o olhar de “Eles Vivem” para as mulheres, em particular para a personagem Holly (Meg Foster), que não passa de uma bela e pouco confiável funcionária da emissora de TV, empresa que atua diretamente em prol do adormecimento da população. O afeto de Nada fica restrito à sua demonstração de brutalidade ocorrida na briga com Frank. Brigando, ambos se sentem vivos e de certa forma solidificam seu laço.
Um filme, é claro, não tem capacidades premonitórias – o que destitui essa obra de alguma culpa, mas não torna a ocorrência implícita da salada ideológica menos significativa. Antes, a trajetória revolucionária desse personagem, predeterminado a ser um Nada desde o batismo, carrega o gérmen de contradições muito contemporâneas, e se mostra portadora de uma atualidade absurda, 35 anos após o seu lançamento.
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Serviço
“Eles Vivem” (They Live, 1988)
Direção, roteiro e música de John Carpenter

