Jamil Snege, o livro como objeto e sua unicidade

Por Daniel Felipe

A novela “Viver é Prejudicial à Saúde” (1998), de Jamil Snege (1939-2003), ganhou uma reedição em 2020 pela Arte e Letra. Snege é autor de pouco mais de uma dezena de obras, como “O Jardim, A Tempestade” (contos, 1989): trabalhos cujo alcance foi particularmente direcionado, e cuja maior repercussão ficou, em algum grau, restrita ao estado onde viveu, o Paraná. 

Da mesma forma como Dalton Trevisan criou uma mítica em torno de sua persona pública, Snege, publicitário, construiu a simbologia de sua imagem a partir da divulgação algo “tímida” de seus trabalhos — pequenas edições, do próprio autor ou de casas editoriais locais, permanecendo distante das casas de âmbito nacional, que eventualmente o convidavam a publicar nelas.

Nesse sentido, a reedição ter ocorrido pela Arte e Letra parece representar um casamento ideal, na medida em que reafirma essa construção. Isso porque a editora dá um número de série aos exemplares de suas edições, enfatizando assim o processo artesanal de confecção dos livros que publicam. Dotando cada livro de uma singularidade, ainda que no contexto da reprodutibilidade, a obra impressa, objeto, ganha uma espécie de “aura” particular. (Falar em “aura”, aqui, soa ao mesmo tempo conceitualmente degenerado e pontual).

Snege, por meio de sua mítica, soube como ninguém agregar valores simbólicos, dentre os quais o de mercado, à sua produção. Tornando-se quase que matéria de culto (entenda-se, respeito profundo), o autor lido por “poucos e bons” representa também um grande caso para estudo do marketing editorial. Lei da oferta e da procura: edições antigas de suas obras podem chegar a custar algumas centenas de reais, conforme revela uma pesquisa rápida feita no site Estante Virtual.

Mas e quanto à obra?

Viver é Prejudicial à Saúde” é uma novela ligeira, dotada de um humor cínico e ao mesmo tempo melancólico, sobre o envelhecer. Seu protagonista é um arquiteto que coloca em xeque sua trajetória profissional e pessoal. 

Poucos inícios de livros, talvez, possuem tamanha fluidez e ironia:

Estou aqui, diante do espelho, examinando as mamas.

Tenho belas mamas — e nunca havia notado. Pequeninas, semelhantes às de uma garota de doze anos. 

Agora que as apalpo e tenho-as no côncavo das mãos, sinto uma súbita ternura por minhas maminhas. Curioso: passar tantos anos sem percebê-las, sem notá-las, simplesmente porque elas não se encaixam na minha autoimagem.

Foi preciso chegar à meia-idade para perceber que tenho mamas, compostas de glândulas, dutos e tecido adiposo, cobertas por auréolas e mamilos.

Estou quase feliz com minhas mamas — embora deva proceder periodicamente a uma autopalpação (…)

O foco do texto é muito menos a trama do que a simples sucessão dos acontecimentos vividos e comentados a partir da riqueza das singularidades impressas nos pontos de vista do narrador. Destaque para as digressões que ocorrem em meio a duas viagens  — passagens não apenas físicas, mas sobretudo de estados mentais, de um local a outro.

De suas reações culposas no episódio do atropelamento do porco, até o acaso de uma paixão inesperada, o narrador-personagem vai mudando sua perspectiva hipocondríaca. Cada vez mais, viver vai sendo essencial à sua saúde —  de maneira que o final aberto acaba se opondo ao medo da finitude desse homem, que ao início havia se descoberto com mamas que o faziam se sentir pouco (ou menos) másculo e mais próximo de uma existência inútil (ou da cova).

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Serviço

“Viver é Prejudicial à Saúde” (novela), de Jamil Snege

Editora Arte e Letra, 2020