Poesia: Um engenhoso e obcecado cifrador de petit-pavé

Por Guilherme Schnell e Schühli

Disfarçado de ambiguidade, o livro envolto em capa e contracapa carmim intitulado Criptógrafo Amador (Medusa, 2006) é a segunda obra de poesia do poeta, músico e doutor em literatura Marcelo Sandmann. Marcelo escreve em ondulações rítmicas sobre um espaço geográfico comum, quase doméstico. Não à toa, o tamborilar denuncia as síndromes artísticas caleidoscópicas da alma do Curitibano; o poeta-músico é preciso no corte com a pena. Sem muita preocupação com a surpresa, seus poemas se valem de espaços e cantos de familiaridade, onde o choque é evidente — e esse é o barato! 

Às vezes a colisão se aproxima do leitor por meio do lirismo. Ela está na “borboleta pequenina (…) [que] roça, sem alvoroço, a penugem do meu pescoço”, ou nos “dois seios, de onde manam leite e mel” que “alimentam um desejo novamente fiel”. O tatear do leitor se acostuma às molduras de seus poemas, que nos fazem parar diante do simples na descoberta do fantástico. Sandmann é capaz de, somente delimitando as margens, pintar obras em recortes estáticos de textos prontos do jornal local.  Em outros momentos, é preciso em cifrar sentimentos, vide a cáustica da dor da decepção acompanhada de um conhaque, ardor de dentro sugerindo queima e cura, em sacramento mais que humano.

CONHAQUE #1

rói, corrói

mordaz, mordente

dente de serpente

língua viperina

dentro, lento

veneno que se instila

em pleno coração

circulação sangüínea

cáustico:

queima e cauteriza

E no enlevo de decifrar seus códigos, vamos chegando com o músico-poeta em uma condição de páginas de rico e irrequieto compromisso de protesto. Uma malícia que se repara na caneta que convoca partisanos às barricadas — quem tem ouvidos, ouça no poema 2 da seqüência de poemas a qual denomina 3 postais:

2.

que saltimbanco é esse

que salta ao

sinal vermelho

nas mãos, três

bolas de meia

pés descalços sobre o asfalto

e uma intangível labareda

no bafo na lata

de cola

Marcelo coleciona no livro muitos leques de poemas que agrupa em sequências, compondo camadas de comunicação e atribuindo com organização o racionamento do texto. Prestidigitações (3 poemas); 11 croquis p/ gestos & desejo (11); Marinhas (2); Conhaque #1, Conhaque #2; 3 Postais; 15 Paesianas (à Paisana) e outros pacotes que são quase capítulos gerindo as salas de exposição. O poeta também é curador de museu. E em sua organização de colecionador de tampinhas, o hábil que cifra, enquanto todos seguram a dúvida, também decifra e assina diagnósticos certeiros. Em “Sympathy for the devil”, celebrei com ele a comunhão dos educadores quando deixa para trás sociólogos, antropólogos e psicólogos para denunciar anjos de luz.

Sandmann mantém em sua prestidigitação de códigos o mesmo vigor de quando, junto a outros cifradores, mantinha o folhetim da UFPR de nome PrEtexto. Se Marcelo é capaz de colocar samba em Curitiba com sua banda ZIRIGDANSK, imagine o que não faz com o leitor em seus códigos-poemas. Decifra-me ou me devoro! No poema Pato ao Tucupi, o poeta desvaira cinematograficamente com o leitor um um relato cheio de ritmo, métrica e habilidade. Nunca tive tanta gana de leitura por um poema que se estendesse por doze páginas, de uma maravilhosa epopéia no calor úmido Paraense.

O Doutor Marcelo Sandmann oferece neste livro o carmim cifrado, um criptógrafo. Seja alguém ou seja um equipamento cheio de engrenagens místicas, Sandmann nos confunde na sua proximidade, intimidade com nosso cotidiano. Seus textos esfíngicos surgem entre nós na surpresa do avesso, lendo, relendo e treslendo sua letra: invocamos o poeta amador, que de tão amador, obcecado, é capaz de codificar!

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Serviço 

Criptógrafo Amador (poemas), de Marcelo Sandmann

Editora Medusa, 2006

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Guilherme Schnell e Schühli é biólogo, pesquisador em Entomologia e autor do livro de poemas A Cidade se Conserva em Vinagre (Entre Capas, 2020). O texto marca sua estreia na redação desta Cena Revista.