Por Guilherme Schnell e Schühli
Invoquei as palavras de Alice Ruiz S. e as comportas se abriram. Em tempos de extinção dos leitores, a inexorável mulher, alquimista de letras, nos encontra, presa precisa vagando em suas páginas. Tentei a leitura quente da Curitibana afastando as molduras. Porque quando se fala em Alice se fala em uma constelação de estrelas, de áur(e)a, Paulos e de anjos. Não há como perder a órbita da paisagem que a cerca porque ela é parte deste jardim que ainda conduz. Jardinagem de semear e colher 21 livros (e olhe lá quantos mais não computei), com grande lista de traduções e sendo perfeitamente cantora, como gostaria, por meio da voz dos outros de quem graciosamente se apossa, um manifesto de ocupação. Achei justo procurar por Alice sem eventuais rainhas vermelhas, em um palco sem cenário onde encontrasse seu protagonismo sem qualquer risco de diluição de seu valor etílico.
Na empreitada me aproximei temeroso do livro-síntese intitulado Dois em Um (Iluminuras, São Paulo, 2008). Meu receio era perder a característica de zênite que cada obra toma, representando uma unidade temporal e ao mesmo tempo física da obra da autora. Um fetiche, admito. Em enredo com o receio, deixei de prever o bônus que a síntese traria ao permitir perceber um panorama muito amplo das linhas de Alice nos idos de 1980. Sob a sombra de um holocausto atômico, em Dois em Um se pode transitar fazendo um itinerário que compreende o cenário de obras de 1989 (Vice-versos), 1984 (Pelos Pelos), 1983 (Paixão Xama Paixão), 1980 (Navalhanaliga). E curiosamente um caminho de sobreposição porque coloca a cronologia em ordem inversa, um livro sobre o outro apresentando no início as obras mais recentes e navegando pelo passado, rejuvenescendo. Que privilégio ter pego o assento de janela neste trem!
Alice Ártemis, caça compondo ágil e abatendo longe do que seja comum:
perto do alvo
longe de mim
a idéia de atirar
Evidentemente imersa em concretismo, a obra demonstra a pertença e a pertinência do veículo da poesia concreta. Quem sabe tenha sido essa afeição que surrupiou a poeta para a terra da fuligem e garoa, berço do concretismo.
boca da noite
na calada em silêncio
grandes lábios
se abrem em mim
Ainda:
sem luto
pelo obsoleto
só
ab
so
luto
Especial delicadeza nas pitadas de hai kai são apresentadas, seja na estrutura do que não se pretende hai-kai seja descaradamente em poemas como:
a ikebana kamikaze
pratica haraquiri
pra virar haikai
Nestes versos, Yuuka (seu heterônimo de haijin presenteado em 1993) esgrima concisa seu pincel de sensei nos elementos deste gênero.
Ainda que eu tenha resoluto procurado por Alice só, encontro-a cercada dela mesma, de luta, deslumbre e viagens geracionais. Porque Alice são, ela mesma, mulheres de impreterível superlativo, de uma condição sistêmica natural, matriarca:
dando à luz uma estrela da manhã
toda luz da manhã
passou por uma estrela
amamentar a estrela
enquanto a via-láctea
tiver leite
Dois em um encadeia um volume enorme de obra e sugere a vastidão e a importância do trabalho de Alice em um retrato de somente uma década. Usando o período como amostra, o livro projeta a necessidade de explorarmos os horizontes da poeta, alternando entre a luneta (para dar conta de um campo tão amplo, vasto) e o microscópio (para escrafunchar as sutilezas do garimpo).
tem os que passam
e tudo passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
Mulher mãe de mundos, seu livro Dois em Um marca o leitor docemente a ferro, suscitando a vazão de um Amazonas nutrindo hirsuta floresta. Ao sorver em um ritmo que desse conta destes intensos anos oitenta, a cada página reverberava lá no fundo a esperança revoltosa de, em breve, ver atribuída a Alice a imponência multidimensional que ela, em tudo que assina, nos oferece.
Serviço:
Dois em Um (poemas), de Alice Ruiz S
Editora Iluminuras, 2008
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Foto: “Alice Ruiz, em 1992”, por Vilma Slomp. Disponível aqui.
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