Por Gustavo Denani
Em um pequeno ensaio, Mark Fisher argumenta que, uma vez dentro da cultura, é impossível sairmos dela. Fisher parte da premissa de que estar “fora” da cultura precede o estar “dentro” dela, de modo que haveria um momento na vida humana (seja individual, na formação psíquico-cognitiva, seja coletiva, no surgimento de grupos sociais) em que uma condição puramente animal, irracional, é “engolida” por esse modo de organizar símbolos, práticas, e corpos em torno de crenças e valores. Apesar dessa premissa, um tanto surrealista, ser análoga à questão do ovo e da galinha, Fisher lança mão de um exemplo interessante para provar seu ponto. Ele menciona uma pesquisa que primatólogos fizeram com um orangotango. Segundo Fisher (ele não menciona a fonte, e não encontrei a pesquisa), após ter sido exposto a filmes pornográficos, o orangotango parou de interagir com seus pares, passando a se dedicar à masturbação. Para Fisher, isso prova que o orangotango, ao ser exposto a tais imagens, passou a habitar uma dimensão simbólica inacessível à maioria dos animais não-humanos. O fato da masturbação ter sido um caminho sem volta para o pobre orangotango provaria a premissa de Fisher, uma vez que a memória das imagens não apenas substituem o sexo pelo estímulo autoerótico, mas tal isolamento em relação ao grupo conferiria uma individualidade ao animal.
Primatólogos também discordariam de Fisher. Macacos têm cultura, cuja lógica e temporalidade são, obviamente, manifestadas em termos outros que os nossos. Dessa forma, cultura não é necessariamente linguagem e materialidade tal como nós fazemos, e sim, por exemplo, a extensão do corpo a partir de pedras e gravetos (gorilas); a rede de comunicação em baixa frequência sônica (baleias); a produção de territórios em torno de quase-rituais de morte (elefantes). Note que não estou equiparando capacidade cognitiva com capacidade de cultura, pois bastaria eu tomar de exemplo o animal mais filho da puta do reino animal, com exceção do ser humano, o golfinho, para ilustrar meu ponto. Não proponho aqui uma generalização sobre “o que é” cultura, e sim que, atendo-se à cultura enquanto uma noção antropocêntrica, podemos esticar alguns de seus processos ou elementos constitutivos para compreender fenômenos de natureza semelhante, mesmo que de diferentes ordens, em outros animais.
Assim, do mesmo modo que não faz sentido saber em que momento o humano entrou na cultura, a mesma questão não tem cabimento para outros animais, incluindo o orangotango punheteiro. Por extensão, a relação causa-efeito entre ser exposto a imagens pornográficas e a prática da masturbação passa a ser menos óbvia. Isso porque o orangotango não infere o estímulo autoerótico pela simples apreensão das imagens. Em outras palavras, a masturbação não é decodificada pelo primata a partir da recepção da pornografia, uma vez que os efeitos poderiam ser outros, como o estímulo de copular com outros indivíduos do grupo. Pode-se especular, ainda, se masturbação não é algo em potencial para esses primatas, se manifestando probabilisticamente em alguns indivíduos, dependendo das circunstâncias. Se a hipótese de Fisher não funciona, isso não torna o caso mencionado por ele menos intrigante. Porém, é necessário pensar em outros termos.
Fisher não deixa claro se o primata foi exposto uma única vez ao vídeo ou se havia uma fita VHS e uma televisão reproduzindo indefinidamente imagens de macacos transando, o que seria relevante para uma relação entre mídia audiovisual, memória, e afeto. No entanto, o que importa aqui é que, aparentemente, a imagem pornográfica não é trivial, mas produz efeitos específicos sobre o corpo do primata. Essa especificidade da pornografia se manifesta, quase que via de regra, nos momentos de surgimento de um aparato midiático. Alexander Galloway menciona* [pág 125; ler ao final] que duas versões de fita cassete disputaram, por um momento, o mercado: uma com mais capacidade de armazenamento e menos qualidade, e outra que era o contrário disso. Diz-se que o público consumidor de pornografia acabou por eleger o primeiro tipo, chamado VHS, pois a qualidade da imagem é menos importante do que a quantidade de conteúdo. Outro exemplo são os deep fakes, cujos primeiros usos foram para sintetizar vídeos pornográficos. Mesmo que tenham caráter anedótico, de fraco embasamento histórico, esses exemplos encontram ressonância na experiência de quem anda pelo centro comercial de uma cidade, em que sempre tem um vendedor de DVDs com um suporte dedicado à pornografia, no meio do calçadão e solenemente ignorado pelos transeuntes.
Ao invés de considerarmos uma linearidade irreversível entre pornografia e masturbação, pode-se compreender a situação do orangotango em termos de uma circularidade calcada na retroalimentação entre a imagem e a prática autoerótica. O animal não ficou preso na cultura tal como Fisher argumenta, e sim nos efeitos que as imagens provocaram em seu corpo. Nesse sentido, a relação entre imagem, aparato midiático, e corpo prescindem de uma dimensão discursiva ou ideológica. Isso não quer dizer que há uma primazia do corpo sobre o pensamento, senão cairíamos na armadilha surrealista que Fisher e outros membros da Cybernetic Culture Research Unit caíram. De fato, a dicotomia corpo-mente limita uma reflexão de fenômenos tecno-corpóreos. Apesar da especificidade da pornografia contemporânea, majoritariamente mediada pela infraestrtura informacional, pode-se notar fenômenos semelhantes sobre mamíferos interagindo com telas, como gatos arranhando uma tela e chimpanzés manuseando o feed do Instagram. Os olhos são seduzidos por essas telas, e as mãos e patas são convidadas a fazerem parte desse acoplamento. Talvez não exista uma sensorialidade estimulada isoladamente, e sim um gradiente de possibilidades em que os sentidos se afetam uns aos outros, sendo pornografia (mas poderíamos pensar em outros fenômenos contemporâneos, como gore e mukbang) um exemplo de imagem que penetra nos olhos e dispara efeitos no corpo. Ou, como propõe Laura Marks (2000), uma visualidade háptica.
Assim, se existe um modo de captura específico de dispositivos midiáticos digitais sobre seus usuários, em que a tela e sua luz acoplam olhos e dedos, formando assim uma interface entre corpo e infraestrutura, cabe indagar qual é a especificidade da imagem pornográfica sobre o orangotango de Fisher e outros primatas. É difícil não pensar em um paralelo entre esse caso, a proporção de pornografia consumida globalmente na internet, e modos patológicos de se relacionar com esse tipo de imagem. Se o orangotango simplesmente trocou suas experiências no mundo pelo curto-circuito de pornografia e masturbação, pode-se inferir algo como um processo pavloviano em que olhar para as imagens e o gozo da masturbação colocam em segundo plano qualquer outra possibilidade de experiência que ele possa vir a ter. De fato, esse comportamento é semelhante a patologias conteporâneas, como vício em pornografia e dependência digital. Se imagens com o mesmo registro de representação provocam efeitos semelhantes nos primatas com polegar opositor, então esse tipo de imagem afeta o aparelho sensorial de modo que outras imagens não o fazem.
E qual seria esse modo? Termino o texto com uma hipótese tão pretensiosa quanto os parágrafos anteriores: a imagem pornográfica funciona como um atalho para o gozo. Em vez de disputar uma fêmea com rivais, a imagem enquanto mimese funciona como um caminho mais simples e garantido para a satisfação. Tal como Fisher, posso estar ofendendo primatologistas com absurdos e lugares-comuns de seu campo. Mas também como Fisher, o que realmente ocorre no corpo de um macaco importa menos do que um comentário sobre a condição sociotécnica contemporânea.
Referências bibliográficas
Galloway, Alexander. Protocol – How Control Exists After Decentralization. MIT Press, 2006
Marks, Laura. The Skin of the Film – Intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses. Duke University Press, 2000.
* “When Betamax caught up in length (to three hours), it had already lost a foothold in the market VHS would counter Betamax by increasing to four hours and later eight. Some have suggested that it was the pornography industry, which favored VHS over Betamax, that provided it with legions of early adopters and proved the long-term viability of the format.” Alexander Galloway, Protoco -: How Control Exists After Decentralization.MIT Press, 2006, p. 125.

