Madeleine Gide e Medeia, um ato de amor

Por Fernanda Sypniewski

Em 1958, Jacques Lacan estabelece uma equivalência entre os atos de Madeleine Gide e Medeia, a personagem mítica eternizada na tragédia homônima de Eurípedes. Medeia é conhecida pelo assassinato dos próprios filhos, e Madeleine por incinerar as cartas trocadas por mais de trinta anos com o escritor André Gide, seu marido. As anotações e cartas de Gide eram fruto de um cuidadoso trabalho do escritor visando à posteridade, e o vazio deixado pela destruição delas, o ato de queimá-las, foi considerado por Lacan como resultado da atitude de uma “verdadeira mulher”. A perda dessa correspondência amorosa foi por ele sentida como o assassinato de um filho, daí o paralelo estabelecido pelo psicanalista entre Madeleine e Medeia, a partir da perspectiva de Gide-Jasão. É também a posteridade de Jasão que é perdida pela vingança de Medeia. Nessa comparação, Lacan destaca, desde a perspectiva da reação da mulher, “o signo da fúria provocada pela única traição intolerável”.

André Gide dedicou sua vida à literatura: fundou a Editora Gallimard e a Nouvelle Reveue Française e escreveu mais de 50 livros de diferentes gêneros – poesia, ficção, biografia e crítica. De uma forma ou de outra, suas produções continham sempre um tempero de sua própria vida, com temas que giravam em torno da homossexualidade e do preconceito, da sensualidade, do amor impossível, e do dever. Alguns de seus personagens guardam semelhanças em relação a pessoas de sua vida privada. A preocupação permanente de Gide com a imortalidade de sua obra evidencia o vazio deixado pela destruição das cartas escritas por ele quase que cotidianamente para Madeleine. O material queimado, endereçado ao único amor oficial de sua vida, era redigido quando estava longe de Madeleine, de modo que tais correspondências eram por ele consideradas como um tesouro.

A crise conjugal que levou à destruição das cartas, ocorrida em 1917, teve início quando Madeleine teria aberto uma carta escrita por um amigo íntimo para Gide, onde o autor reprovava a relação extraconjugal do escritor com o jovem Marc Allégret, que posteriormente se tornaria cineasta. Essa foi a transformação fundamental ocorrida nesse período. Durante uma viagem de Gide, Madeleine, solitária em sua mansão, relê todas as cartas recebidas ao longo da relação, e então comete o ato de queimá-las. Madeleine teve, afinal, de fazer alguma coisa para se salvar da enorme angústia pela qual fora tomada com a partida de Gide.

A hipótese de Lacan para a fúria de Madeleine consiste no fato de que ela teria reconhecido nos escritos de Gide, quando da ausência do esposo, a “presença” de seu amor. Mesmo ciente das excentricidades de seu marido, Madeleine contava até então com a superioridade do sentimento que ele nutria por ela, lugar que era garantido pela extensa correspondência. Pela primeira vez, os afetos de seu amado se tornaram ameaçados. Depois desse episódio, ela passou a se distanciar do papel antes assumido na vida do escritor. Porém, apesar de tudo, permaneceu ao lado dele por mais vinte anos. De todo modo, Madeleine retirou-se do lugar de mulher amada, queimando as provas desse amor.

A tragédia de Eurípedes é a responsável por eternizar o mito de Medeia, cujas características são associadas a Madeleine conforme comparação originalmente concebida por Lacan — o psicanalista articula tais aspectos às suas teorias sobre o feminino. Encontramos diferentes versões das figuras mitológicas de Jasão e Medeia, entretanto foi Eurípedes o maior responsável pela propagação da história e sobretudo da versão em que Medeia assassina seus filhos.

Na tragédia, Jasão retornou à sua cidade natal aos vinte anos, e reclamou o trono ao tio. Este, entretanto, impôs ao sobrinho condições que sabia impossíveis de serem cumpridas: pediu que Jasão trouxesse de Cólquida o Velocino de Ouro (lã de ouro do carneiro alado Crisómalo) que, de posse do rei Eetes (pai de Medeia), ficava em um bosque sagrado do deus Ares e era vigiado por um dragão. Ao chegar à Cólquida, Medeia prometeu ajudá-lo, traindo o próprio pai, se em troca Jasão jurasse casar-se com ela e a levasse para sua cidade natal. Assim é iniciada a história do casal. Jasão retorna a Iolcos, seu reino, vitorioso graças a Medeia.

O texto de Eurípedes é iniciado no ponto em que Jasão decide abandonar Medeia para se casar com Glauce, a filha de Creon, rei de Corinto. Jasão viu vantagens sociais e econômicas na união real, encontrando aí os argumentos para abandonar a mulher. Com a promessa do casamento, o novo rei baniu Medeia da cidade. Sob o pretexto de se despedir dos filhos, ela conseguiu o prazo de permanência de um dia, tempo suficiente para tramar sua vingança e planejar sua fuga para Atenas, sob a proteção do rei Egeu. Vemos na transformação de sua tristeza em ira o alimento de seus planos de ação. Jasão lhe revela o desejo de ficar com os filhos, e também seu sentimento por eles, de modo que Medeia conseguiu captar a verdadeira preocupação do ex-marido.

Medeia pediu a seus dois filhos que entregassem a Glauce um presente de núpcias: um véu e uma coroa de ouro contaminadas com poções letais. A noiva vestiu os adornos, dos quais surgiram chamas que consumiram sua carne. Creon, ao tentar socorrer a filha, teve o mesmo destino. Para finalizar seu plano, Medeia assassinou os próprios filhos depois que voltaram do castelo. A parte trágica do mito é encerrada com a partida da protagonista para Atenas, num carro alado puxado por dragões, presente de seu avô Hélio, o Sol.

Gide, portanto, não reconheceu em sua esposa a Medeia, a mulher capaz de matar seus próprios filhos para atingir o seu homem. Ambas possuem em comum a execução do ato como uma resposta à traição do parceiro, e ambas cometeram tal ato após terem perdido o seu objeto de amor. Suas ações consistiram em destruir aquilo que era mais importante para os maridos, mas, principalmente, o que era mais importante para elas próprias – para Medeia os filhos, para Madeleine as cartas de amor.

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