Por Guilherme Schnell e Schühli
Sempre me fascinou a qualidade de gente que vive desperta para o negócio. Aquela antena em estado de atenção e presença plena. Pronta a receber os mínimos detalhes de uma demanda de barganha. São olhos felinos que conseguem esquadrinhar o tempo e o espaço em busca de um movimento no escuro. Mínimo vibrar dos longos bigodes e as garras seguram a mosca em uma precisão obscena. O gato solta o inseto sabendo que o ciclo se repetirá em segundos e com melhor precisão e maior obscenidade ainda.
Nestes ciclos de negociar eu tenho a tendência a perceber tardiamente que deixei a mosca passar. De fato, passou um elefante. Quer ver? Preparei meu prato do almoço de forma muito saudável (e burra). Caprichei na salada com vistas a ser esperto para seguir a ordem do dia: saúde! Quem tem cerca de cinco décadas vai entender a ortorexia com a qual pretendemos nos salvar por catecismos compulsivos de pretensiosa atenção à saúde. Bobagem, calafrios de consciência saudável e yoga são capazes de simular saúde, mas não encerram a aceleração da morte. Com o prato quase como um coxo de celulose e água, a dona do restaurante me cumprimenta diante do exibicionismo, caleidoscópio de cores. Era tudo o que eu queria, aquele canto de sorriso úmido. Entre eu e o cara mais atrás na fila, mais barrigudo que eu, ganhei a atenção da moça! Peguei a mosca na certeza de dominar o roteiro e solto o bicho para mostrar a todos que a pegarei de volta com maior maestria. Sorri com o canto da boca, simétrico ao sorriso que ela me deu, endireitei a espinha, mostrei de leve os dentes. Agradeci terminando em um tom mais grave, segredo certo para enfeitiçar os outros, ensinado por um sargento bombeiro que nos deu um curso de brigadistas. Ao sentar à mesa com o troféu na mão vi uma mosca pousando nas proximidades. Perdi! Paguei o preço do buffet livre, muito mais caro do que o consumo real de meu prato. Se estivesse atento, poderia ter solicitado a pesagem, mas a moça me distraiu. Os olhos felinos da proprietária aguardavam obscenos para a próxima captura, fitos no horizonte da savana imagética.
Partindo deste exemplo posso contar que, não raro, me deparo com cenas onde diante da oferta de um copo de água o cidadão garimpa uma taça de vinho. “Quer uma bala?” “Claro, puxa obrigado, eu estava mesmo precisando, falando nisso você sabe de alguém que esteja interessado em um pano de prato? Já vendi minha cota mas não quero carregar mais este para casa, te faço pelo preço de custo”. Veio a bala e foi-se o pano pelo dobro do preço normal de venda. Foi com descontração, sorrisos, piscadinhas e mão no ombro. É algo com o que alguns nascem armados, não se trata de um dom mas de um arsenal de habilidades que compõem a capacidade fenomenal de intermediar supostos benefícios.
Comecei a estudar estes momentos na tentativa de prever as artimanhas de tantos negociadores contra o despreparo herbívoro de minha capacidade de visão. E para colecionar objetos de estudo eu precisava também caçar momentos de negociação. Uma espécie de metacaçador construindo um jirau, uma plataforma alta de onde pudesse observar a intrincada teia de relações na selva. De onde eu pudesse ver a onça, o leão baio e até mesmo a jaguatirica em seu deslocamento furtivo.
De meu esconderijo, aos poucos, pude tirar algumas conclusões. A arte do negócio inicia com um velho capitão atracando um navio cargueiro. Firme no timão e no cachimbo ele maneja sem titubear as dimensões geológicas da costa sem perder a sensibilidade dos aparatos portuários. Sabe que o descuido entre o ângulo e a força do motor pode significar a perda de tudo. Como a moça que se aproxima do pretendente sem deixá-lo saber se de fato deseja o beijo mas, sugerindo-o de forma sensível, hesitante. Ela semeia sua vontade no outro para que seja sentida como se fosse dele. Neste momento, ele pensa que é o gato, mas já está em posição na qual não pode mais impedir a captura. Foi pego.
É uma salada amarga de deglutir perceber que não sou fitness a despeito de minha submissão à propaganda cultural. Maldito colosso do esporte, ainda nadando e correndo para a morte. A moça atracou seu transatlântico ao perceber meu desejo na composição improvável de meu prato. Assim ela derruba centenas por semana. Uma mescla de Artemis e Sísifo a gata solta para logo reiniciar o jogo com maior maestria. Foi minha pretensão que fez com que eu arrebentasse a proa na topografia submersa desta baía, e a todo vapor. Como pode Jacques Cousteau em reveillon no bateau-mouche!?
Entendi que essa coisa de troca passa por uma atenção às expectativas e valores da vítima. Tenho de desatar de meus óculos para enxergar o mundo pelos olhos do outro. Meu pai diria que é como vestir o sapato dos outros. Isso pode ser visto como empatia, mas, dependendo da fome, não pode deixar de ser caçada. E a fome é foda, observava o polaco.
A moça sabia dos desejos do pretendente e estava consciente da periculosidade de seu próprio arsenal pois, tinha espelho, mediu por anos sua própria beleza. Trata-se de um balanço onde entendia a relação de troca. Ele queria sua carne, ela queria o troféu de ser a melhor. Sabendo as expectativas, bastava ajustar pontos de vistas, temperos e luz para fazer parecer que tudo era muito caro. Um pescoço em tez de marfim onde a jugular pulsava graciosamente. Mesa posta. Um cervo em caligem ao amanhecer baforando perto do riacho. Tudo tinha de ser muito caro a ponto de que diante de qualquer promoção o garoto se lançasse a morder o anzol. Era segurar a coleira até que o cão tornasse a luta para não se esganar na guia maior que o próprio valor da presa. Ela se apresentou tímida, desviou o olhar para a esquerda, ofereceu lânguido pescoço que nascia de nenhum decote, mas da promessa de peitos pequenos e firmes. Não sabia ao certo se via ou se imaginava os mamilos arranhando a seda da camisa, e a jugular tamborilava, sentia-se esganado.
Estavam lançados anzóis, zagaias foram postas em riste, gaiolas, buracos, fisgas e laços espalhados no espaço. Na alternância de argumentos, a maioria deles sem o uso da palavra, fazemos negócios. Conto minhas cédulas meio escondido, é uma forma de jogar com elementos de inteligência, segredos. Sorrio, converso, trabalhamos com conceitos de sondagem do terreno. Cada capitão antevendo a delicadeza de pequenas guinadas do timão a quilômetros de distância.
Tudo é negócio e a vida é um grande jogo chato que custa muito a ganhar. Volto ao meu prato de frustrações e no meu saldo tenho perdido negócios, afogado na minha distração. Pançudo, o navio todo sucumbe aos devaneios, faz água o tempo todo. Recorro a colocar minha atenção onde o mágico sugere enquanto prestidigita com a outra mão o sumiço da moeda. Bobeio e do nada aparece um coelho. Ouço um cliente pedindo um desconto ao emendar simpático um elogio pelo bom atendimento. Eram dois reais que lhe faltavam, seria mais conveniente o desconto do que a providência de alternativa ao pagamento. Sim, teriam custos na espera dos demais clientes e aquilo já estava uma muvuca. Negócio fechado, dois reais a menos. Se ele conseguiu eu perdi. Fui tímido, achei que era justo aceitar o preço e paguei, não pleiteei desconto. Estava eternamente desatento, acertei na mosca.
Analisando, de meu esconderijo de caça, considerei também se escamotear desejos não fazia parte do processo de negócio. Sim, porque sem saber os meus desejos o outro teria problemas em aportar seu navio com precisão náutica. Pelo menos dificultaria entender o que é lucro e o que é custo. Se não desse bola à diferença de preço entre o buffet livre e o buffet por quilo poderia deixar despercebida minha posição social, como quem tem dinheiro o suficiente para considerar irrelevante essa diferença. Colocaria na negociação minha capacidade de fazer dinheiro com tal segurança que poderia tornar minha barriga um símbolo da capacidade de viver o que ganho. Estava posta mais uma pretensiosa arapuca. Agora cabe a paciência dos predadores. Entre tantos elementos de captura, agora derramamos tempo sobre a mesa. Quem melhor nadar na vastidão do tempo fará por certo o melhor negócio. Negociar não o que é bom pro outro mas, que é melhor para mim com cara de vitória alheia. Não me venham com fantasias de paridade e sinergia, um esoterismo de ganha-ganha. Na teia alimentar sempre tem um que come o outro e a simbiose sempre me pareceu coisa de maconheiro.
Pior quando o que me captura é o algoritmo. Um espetáculo mambembe de segundos é somente um dos vagões de um trem sem fim que desfila a troca de meu já escasso tempo por um riso abobado. Um saque de minha poupança de vida para ver um meme de gatinho que se segue de outras bobagens vendendo propagandas direcionadas. Ali não tem jeito, somos sempre a mosca gelada torturada como presa. Não tem como reverter esse monólogo, esse espelho é inegociável como é o tempo que vai com ele. E tempo é dinheiro. Bom para os outros, perdi mais um pouquinho.
Nessa luta de todo o dia, sorrisos, dedos, telas e abraços precisam de mais uma observação. As pessoas que dedicam muito tempo ao exercício do braço passam em algum ponto a negligenciar o exercício da perna. Quem atraca bem o barco, pode ter um revés no desembaraço aduaneiro de sua carga. Por isso hoje perdi o negócio, mas meu veredito inequívoco é o de que saí ganhando. Confidencio sem custo minha conclusão de que em qualquer caçada, todo gato tem de dominar a habilidade de ser mosca. Ao perceber o conselho em minha mente a menina ri um sorriso assimétrico, desfila um beiço úmido e oferece o pescoço. Afinal de contas, mesmo que com a garganta nas garras da menina, pode ser que exatamente o tempo é que me garanta esse negócio. Recoloco os óculos no rosto, verifico o relógio no pulso e saio zanzando como mosca morta a caçar pela calçada.


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