Por Daniel Felipe
A repercussão do lançamento da minissérie A Queda da Casa de Usher (Mike Flanagan, Netflix, 2023) é mais uma demonstração da presença de Edgar Allan Poe (1809-1849) na cultura humana, sua universalidade. O trabalho une personagens e tramas de textos diversos do autor estadunidense, tecendo relações que não foram originalmente estabelecidas pelo poeta e prosador, ainda que partam dele.
A chegada dessa produção não apenas ao streaming, mas sobretudo sua existência como produto original da plataforma gigantesca, carrega consigo um paradoxo interessante. Ao mesmo tempo em que produz uma imersão potente não apenas no universo de Poe, mas também no horror enquanto gênero, o trabalho produzido por Flanagan mergulha aqui e ali em certas convenções inerentes à Netflix, trazendo ao espectador elementos de um entretenimento algo banal e pasteurizado.
Em todo caso, a proposição de partir de Poe não para adaptá-lo, mas para criar a partir dele, se mostra bastante apropriada. O autor que tanto tematizava a morte, afinal, criou uma obra marcada por uma vida própria, cuja existência está aquém e além do tempo, para parafrasear aquilo que Julio Cortázar (1914-1984) definiu antes como “dimensões extratemporais” dos escritos do colega do século XIX.
Sem exagero, lidar com Poe — traduzi-lo, filmá-lo, examiná-lo — exige mais do que meras adaptações. A obra de Poe, em sua grandiosidade, demanda diálogo, interlocução ativa, jamais deixando espaço para a famigerada “adaptação” pura e simples. Afinal de contas, como cravou Cortázar, em se tratando desse escriba “há mais, há sempre mais. Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós, em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro”.
Nesse sentido, trazer aqui a criação recém-lançada de Flanagan não passa de um pretexto para falar de um dos mais interessantes diálogos brasileiros com a obra de Poe, ocorrida também no campo do audiovisual. Trata-se do curta-metragem O Corvo (1983), de Valêncio Xavier (1933-2008).
Em breves 12 minutos, Xavier insere o local — mais precisamente, o Centro Histórico de Curitiba e suas cercanias — no universal. O poema The Raven ganha no filme uma tradução repleta de liberdades executada por Reynaldo Jardim e Marilu Silveira, que é declamada pelo ator Paulo Autran. Nos versos, o eu-lírico lida com a questão da finitude a partir da perda da amada Lenore (no filme, Leonor) e da interação com um soturno corvo, que lhe repete a expressão “nevermore”, ou “nunca mais”.
A câmera desvenda o espaço dessa Curitiba dos anos 1980 que remete a séculos passados — uma tensão propositiva, que dilata as temporalidades e torna o passado contemporâneo ao presente. São registrados personagens pitorescos, tipos urbanos que remetem a Corvos e Leonores; “homens e mulheres de Curitiba” conforme os créditos. O sinistro, afinal, está em todos nós. Junto a eles, Xavier articula gravuras de Gustave Doré (1832-1883) que dialogam com o poema narrativo, promovendo exercícios de tradução intersemiótica a partir das relações entre a fala e a montagem dos planos que registram as imagens impressas.
Além das gravuras de Doré, Valêncio estabelece vínculos de afinidades eletivas que ora convergem com a atmosfera sinistra proposta n’O Corvo, ora se reportam a uma proposição do realizador em dialogar com a história do cinema (expressionismo alemão, montagem soviética, nouvelle vague). O Nisi Dominus de Vivaldi ocupa a banda sonora em breves momentos (o início e o final), contrastando com a narração over e seus momentos de silêncio — há um único momento com o uso de som direto.
Na brevidade do curta, Xavier pensa nas relações entre linguagens, mídias e memória, posicionando o local em relação ao universal, inserindo assim sua contribuição no manancial tradutor-dialógico que circunda The Raven. E, de certa forma, evidencia a eleição de Edgar Allan Poe como um precursor privilegiado de sua própria poética — a respeito dessa consonância imaginística, lembre-se que dois anos antes do curta fora lançado O Mez da Grippe (1981), e que no mesmo 1983 foi a vez de Maciste no Inferno.
Como realização cinematográfica, O Corvo valenciano é uma obra maiúscula, de um diretor igualmente de primeira grandeza. A obra é capaz de desfazer de uma vez por todas a falácia eventualmente propagada segundo a qual a poética inventiva do autor na literatura, que transita por códigos de outras linguagens, seria fruto de um sentimento de menos-valia em relação a uma carreira frustrada no cinema.
Um curta, como um conto ou um poema, é uma obra por si só, tanto quanto um romance ou um longa-metragem. Lançar longas não faz de alguém mais ou menos cineasta do que aquele que lança um curta ou um média-metragem. O mesmo vale para um romancista em relação a um contista — recorde-se que o próprio Poe só publicou um romance. Tais hierarquias só existem para o deus mercado, comandante do submundo.
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Serviço
O Corvo (1983), direção de Valêncio Xavier
A Queda da Casa de Usher (2023), showrunner Mike Flanagan


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