Por Gustavo Denani
Uma narrativa pode ser entendida como uma linha traçada pelo ponto de vista de quem a escreve. Esse ponto de vista assume formas como a de personagens ou narradores. Tal linha sempre é parcial, tanto no sentido de sua incompletude, quanto a ser refratária a uma suposta neutralidade. Elas podem explicar os mundos que descrevem, mas jamais os esgotam. De fato, é justamente na impossibilidade de esgotamento que é possível a proliferação de sentido.
Infraestruturas, por sua vez, têm pouco, talvez nada, a ver com narrativa. Elas organizam fluxos de energia, água, pessoas, esgoto, informação, entre outras coisas das que garantem a manutenção da nossa vida. Elas compreendem um emaranhado de tubulações, cabos, e circuitos. Estes, por sua vez, são pontuados por protocolos, válvulas, e outros dispositivos que regulam seu funcionamento. Se uma infraestrutura é composta de fluxos, então ela é, ao menos diagramaticamente, um plano que contém linhas.Ademais, elas reduzem o mundo nos termos do modo como operam. Assim, uma represa “vê” um rio como litros de água, ou watts em potencial. Apesar da distinção entre uma e outra, narrativa e infraestrutura partilham de uma redução do mundo, seja para dar sentido a ele, seja para operar sobre ele. Ao mesmo tempo, narrativas não prescindem de infraestruturas, e vice-versa.
True Detective
O trabalho de detetives, pelo menos como é retratado em cultura pop, consiste na costura de provas para montar uma narrativa sobre um crime. De certa forma, a narrativa que assistimos já é de uma segunda ordem, uma vez que é a versão do filme sobre a versão da investigação. A coleta de evidências e as inferências a partir delas são parecidas com o trabalho de um cientista, que vai experimentando hipóteses, juntando materiais para tentar dar sentido a um fato, ou, no caso da investigação, manufaturar um fato secundário – quem fez o crime, qual o motivo.
Em True Detective, o personagem de Matthew McConaughey, Rust, é um exemplo quase caricato de um ethos de detetive. Sua obstinação em descobrir quem está por trás dos crimes o faz mapear um circuito composto por uma rede filantrópica neopentecostal, policiais corruptos, e trabalhadores braçais acima de qualquer suspeita. No final da temporada, os crimes são solucionados, a justiça triunfa, e, no entanto…

Por que ele não está satisfeito, mesmo depois de descobrir o autor dos crimes e estabelecer todas as conexões entre os assassinatos? Ele é louco? Sim, provavelmente ele tem um parafuso solto, mas os loucos às vezes têm razão. No caso de True Detective, a loucura de Rust tem algo de paranóia. Em outras palavras, o que o move é a propensão em concatenar fatos, pessoas e vestígios, tal como no meme do It’s Always Sunny in Philadelphia. O que aconteceu com Rust foi algo como uma retroalimentação dessa propensão a explorar conexões, uma vez que a cada suspeita solucionada, algo maior começava a se desvelar. Um trabalho de detetive monta a espiral de fatos em um sentido centrípeto, que culmina, em True Detective, no algoz da temporada, o Yellow King. Então quem mais falta ser pego?
Um incômodo persistente nos protagonistas é a “maldição do detetive”, em que a solução do caso está embaixo do nariz. No começo da investigação, Rust e Marty encontram o antagonista por acaso, porém, sem identificá-lo, evidenciando assim a maldição. O cenário dos crimes e do confronto final ocorrem predominantemente nos pântanos de Louisiana (vide imagem acima do texto).
Se o Yellow King está embaixo do nariz deles, as refinarias estão acima, distantes da rede de políticos, pastores e famílias tradicionais que compõem o esquema investigado pela dupla. De fato, é na paisagem pantanosa que os bandidos menores atuam, e por isso mesmo, é lá que Rust e Marty resolvem o caso. Como fica evidente no final da temporada, elas não são apenas um cenário, mas representam o emaranhado de laços familiares, políticos, e culturais que fundam os valores da sociedade rural branca do sul americano. E no horizonte de tudo isso, estão as refinarias.
Desnecessário dizer que o petróleo foi um componente fundamental para o desenvolvimento dos Estados Unidos. Foi a partir dele que a indústria automobilística se tornou possível, condicionando a miserável vida suburbana (o sonho americano), e alimentando o complexo militar-industrial tal como conhecemos hoje. Entre uma família do Colorado que usa o carro para fazer as compras do mês e o uso de munição radioativa em Bagdá na Segunda Guerra do Golfo, há a indústria de extração e refinamento dessa matéria-prima que sustenta o país.
Dito de outro modo, se o herdeiro de uma indústria petrolífera se tornou diretor da CIA e presidente dos Estados Unidos, isso diz menos de George Bush do que da sua posição em meio à infraestrutura que ele possui. O poder de infraestruturas está no modo como condicionam a dimensão material da vida humana, influenciando aspectos diversos da nossa vida como ritmos, hábitos e sensações. É por isso que a paisagem de True Detective pode ser mero plano de fundo para a narrativa, mas talvez seja justamente por isso que uma narrativa de detetive, centrífuga ao dar sentido a uma sequência de fatos, não é capaz de entender o caráter sistêmico e centrífugo que advém de uma investigação sobre infraestrutura.
Se Rust está sempre um pouco além da realidade vivida pelos outros personagens, talvez seja porque ele suspeita de que há algo além das narrativas de seu trabalho e vida cotidiana. Isso fica claro na epifania de caráter transcendental que ele tem no último episódio, o que acaba, ao menos aparentemente, neutralizando seu ímpeto investigativo. No entanto, se por um acaso ele começasse a puxar o novelo que leva até as refinarias, ele resolveria sua inquietação?


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