A divisão subjetiva nos filmes “Mil Vezes Boa Noite” e “Força Maior”

Por Fabiana Pequeno

Os filmes “Mil Vezes Boa Noite” e “Força Maior” são densos e complexos, e poderiam ser analisados por diferentes perspectivas, a partir de diferentes abordagens. Porém, o recorte que trago neste texto diz sobre o tema da divisão subjetiva. É uma pena não ser possível contar aqui todas as reflexões que tive ao assistir a essas duas brilhantes narrativas, mas, como bem aponta Lacan, tudo o que se pode dizer é que não se pode dizer tudo, e não é mesmo sobre isso que trata a divisão? 

As duas películas trazem assuntos parecidos. Em “Mil Vezes Boa Noite” temos a personagem da Rebecca, interpretada por Juliette Binoche, que se vê frente a escolha de fazer o que ela quer ou fazer o que a família quer que ela faça. Já em “Força Maior”, temos o personagem do Thomas, pai de família que também precisa encarar uma escolha que é entre ele e a família, porém de forma muito mais súbita que Rebecca. Embora sejam filmes com problemáticas similares, a maneira como cada personagem lida com a divisão é singular, levando a conclusões muito diferentes no final de cada história. 

Quando conversei com outros colegas sobre o conceito da divisão subjetiva, percebi que, embora haja um consenso a respeito do seu significado em termos gerais, ainda assim existem dúvidas e divergências quanto ao seu entendimento. No próprio Índex, que traz as referências dos seminários de Lacan, se você procura pela palavra “divisão”, descobre que ela é mencionada em vários seminários, em contextos diversos. E essa é uma ideia que existe desde Freud, que falava na divisão do sujeito a partir do trauma, e também da divisão que existe entre, de um lado pensamento/lógica, e do outro os afetos. Entretanto, a ideia que Lacan propõe é outra. Sendo assim, entendo que ainda há algo a se refletir acerca desse tema, e acredito que, a partir dos dois filmes, podemos analisar este conceito e traçar relações interessantes. 

A divisão subjetiva

A partir dos estudos em Lacan, entendo a divisão subjetiva enquanto algo característico da neurose, que diz sobre a ambivalência do desejo. Um querer e um não querer, um querer fazer o que se quer, mas também querer fazer o que o outro quer que a gente faça (ou que achamos que o outro quer). Querer se agradar e agradar o outro também. Penso ser um tema relevante, pois temos visto isso de forma recorrente nos consultórios, nos casos de neurose que chegam até nós. O paciente neurótico sempre traz esse impasse, essa questão. Escutamos aquele paciente que quer poder sair do trabalho na hora certa e não ficar fazendo hora extra, mas que não quer dizer isso para o chefe com medo de desagradá-lo, portanto não faz nada. Ou então a mãe que quer estar presente na vida dos filhos, dando conta de todas as demandas que existem nessa relação, mas que também quer manter sua individualidade, sair com as amigas e ter outros projetos. Também temos o adolescente, que quer poder ser quem ele é, mas não sustenta isso porque acredita que a família não vai gostar. E esses pacientes permanecem indecisos, presos nesse impasse por muito tempo. O sofrimento frente a questão é prolongado por muitas e muitas sessões. 

Além disso, a divisão também tem aparecido nas neuroses do cotidiano. Observamos nas conversas entre amigos e nas redes sociais o quanto tem se falado no típico drama do casal, que vai escolher o que assistir na Netflix ou qual comida pedir no Ifood, e fica uma hora para decidir o que quer. Porque é isso, eu até sei o que eu quero, mas acho que o outro quer outra coisa, então eu espero o outro dizer o que quer, torcendo para que ele queira a mesma coisa que eu. Porque se ele quiser a mesma coisa que eu, pronto! Não tem mais o conflito, eu não perdi nada: consegui fazer o que eu queria e, ao mesmo tempo, não desagradei a pessoa que eu amo. Consegui tudo!

Se queremos falar sobre a divisão do sujeito, faz sentido começarmos do ponto de partida da subjetividade, que é o Estádio do espelho. Lacan entende que tem uma transformação que é produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. Isso se dá através do olhar, porque antes mesmo do bebê poder falar e fazer gestos, ele se organiza e se conecta com o mundo exterior a partir do olhar. Em um primeiro momento, a criança se olha no espelho e se reconhece, contudo se volta para o adulto buscando essa confirmação. É um momento em que o sujeito ainda se vê de forma fragmentada, mas antecipa uma imagem de totalidade, de unidade, que é imaginária. Essa imagem sem cisão seria o eu ideal, essa instância imaginária em que eu e o outro ainda estão muito misturados, e que vem acompanhada da ideia de que conseguiríamos corresponder ao que o outro espera de nós, que seríamos esse objeto que completa o outro. Na neurose há ainda um segundo momento onde acontece uma operação simbólica, que no esquema óptico é a entrada do espelho plano, com a mudança de perspectiva do observador, que faz com que o sujeito finalmente se enxergue enquanto um ser que é separado do outro. As flores e o vaso do esquema óptico vistos como objetos distintos, um dentro do outro, mas não como uma coisa só. Essa operação, que acontece a partir do Complexo de Édipo, passa pela Castração. Portanto, o sujeito entende que não é esse objeto que completa o outro, que não é tudo para o outro. Ao mesmo tempo, faz-se a pergunta: se eu não sou tudo para o outro, então o que eu preciso ser/fazer para ser tudo para o outro? Entendendo que com essa resposta se chegaria a uma completude. E é o próprio sujeito que responde a essa pergunta, criando-se assim o ideal de eu, que é essa lista de todas as coisas que eu exijo de mim mesmo, que eu penso que  preciso ser/fazer para conseguir ser tudo para o outro, para não existir a falta. Ideal enquanto esse lugar que, se alcançado, tudo ficará bem. Só que esses ideais nunca são alcançados. A castração, que já é um tratamento simbólico para o real, aponta para essa falta, para a impossibilidade dessa completude. 

Portanto, entendo que, a partir do momento em que o sujeito, na neurose, passa por essa operação simbólica, cria-se a divisão. Divisão entre o que eu sou e o que o outro é, entre o que eu quero e o que o outro quer. E que diz de algo que escapa, que falta. E por mais que se busque o ideal, até como forma de escapar dessa divisão, ela é inexorável, sempre vai existir. É impossível ser tudo para o outro, é impossível chegar nessa completude, e a falta permanecerá. E quando o sujeito fica dividido entre agradar o outro e se agradar, ele está falando desse desejo que é da ordem do impossível, de que as duas coisas possam coincidir. Que eu possa me agradar e também agradar o outro. Que eu possa fazer o que eu quero e, ao mesmo tempo, o que o outro quer. Para que não haja falta, para que se possa ter tudo. 

Por isso que na psicose, que permanece ali no eu ideal e não passa por essa operação simbólica, a gente não vê dúvida: é tudo ou nada; eu quero ou eu não quero; faço o que o outro quer ou não faço. Enquanto que na neurose sempre tem a dúvida, sempre tem o impasse. Nesse sentido é que há uma divisão subjetiva.

“Mil vezes boa noite”

 

Em “Mil vezes boa noite”, temos a história da Rebecca, uma fotógrafa de zonas de conflito/guerra. É uma profissão perigosa, de alto risco, mas na qual ela é reconhecida. Ao longo do filme vemos o quanto ela é elogiada, o quanto ela se destaca no trabalho, tanto que quando ela decide parar de trabalhar sua agente tenta a convencer do contrário, dizendo o quanto suas fotos são incríveis. 

Só que chega um momento em que o marido dá um ultimato. Ele diz o quanto ele e as filhas se angustiam toda vez que Rebecca está viajando por conta dos riscos que ela assume. Inclusive ela sofre um acidente grave no começo do filme. Então ele diz que, ou ela para de atuar nessa área, ou ele vai pedir o divórcio. Ou seja, haverá um rompimento na família. O marido enquanto um representante simbólico da castração, que a lembra de que ela não pode ter tudo. 

Frente a essa escolha, Rebecca decide inicialmente que ficará em casa e não irá mais trabalhar. Porém, fica claro que ela não está totalmente satisfeita com essa escolha, que não é bem isso que ela quer. Porque no fundo seu desejo é continuar trabalhando e, ao mesmo tempo, não se afastar dessa família, mantê-la unida. Só que por muito tempo ela não assume isso, afinal falar do desejo é falar da castração. O desejo é ter tudo, e não se pode ter tudo. Por isso é tão difícil para o neurótico falar do desejo. Tanto que muitas vezes ele fala do desejo enquanto sendo do outro; é o outro que quer, não ele. Aliás, há um diálogo bem interessante entre Rebecca e sua amiga Theresa que diz sobre isso. Theresa fala, “nossa, parece que você precisa disso” (ir para as zonas de conflito, correr esse risco e fotografar), e Rebecca responde que não é ela que precisa, é o mundo que precisa. Então a amiga diz para ela parar com isso e reconhecer a verdade, que Rebecca realmente gosta da profissão. 

Portanto, claramente uma posição que é da neurose. Não é meu o desejo, o desejo é do outro. Uma forma de não deixar esse desejo aparecer, porque assumir esse desejo é reconhecer que algo vai ficar de fora. 

E o que Rebecca quer não é só poder ter as duas coisas, a profissão e a família, mas também ser muito boa nas duas coisas. Muito boa enquanto profissional e também enquanto mãe e esposa. No filme há uma cena muito interessante que aponta esses ideais. Depois que Rebecca decide que não vai mais fotografar, ela permanece com a família e um certo dia vai acompanhar o marido no trabalho. Ele é biólogo e dá aula para crianças, a antítese do trabalho da esposa, em que quase não há perigo. Neste dia, Rebecca conversa com os colegas de trabalho do marido e tem uma interação que é um pouco estranha. Ela acaba sendo rude e parece não ter muita paciência, discordando do que eles estão falando. Em seguida, ela está sozinha com o marido e conversa sobre o acontecido:

Rebecca: “Eu não sou boa nisso”,

Marido: “No quê?”

Rebecca: Na vida. Em ser normal.

Marido: Como o quê? Tomar café com os amigos? Bater papo?

Rebecca: Não sei como você consegue. 

Se pensarmos no avesso da queixa, quando Rebecca diz que não é boa, na verdade está dizendo o quanto gostaria de ser (dialética da neurose). Na profissão ela se sobressai, consegue ser muito boa no que faz. Porém, não sente o mesmo nos papéis mais tradicionais de mãe e esposa.  Ela queria poder ser muito boa nas duas coisas.

E não é só a personagem da Rebecca que nos expõe a esses temas. A questão da divisão subjetiva, desse querer tudo, também é representada pelas personagens das filhas. A mais velha se vê entre o desejo de ter uma mãe extraordinária, a qual ela possa admirar (como quando leva as fotos de Rebecca para uma apresentação na escola), mas também ter uma mãe que a busque na escola, que faça o café da manhã, que não corra riscos. Ou seja, que seja uma mãe como as outras. E é interessante pensar que o ideal de eu também diz das estruturas de admiração, de quem a gente ama, e é justamente nesse impasse que a filha mais velha se encontra.
Já na caçula, a divisão se mostra em uma cena muito singela, na qual ela vai adotar um gato. O senhor que levaria o gato a ser adotado chega em sua casa com dois gatos. “Você vai ter que escolher um, qual você quer?”. A menina prontamente responde “eu não quero ter que escolher, eu quero os dois”. Ela quer tudo! Acho interessante que um dos gatos se chama “happy”, que em portugês significa feliz, e o outro “lucky”, que é sortudo. Para mim esses nomes refletem a forma como Rebecca se sente nesses lugares que ela ocupa: feliz no trabalho, onde é reconhecida e se sente realizada, e sortuda por ter uma família que a ama, que a cuida e para a qual ela pode voltar. 

Entretanto, a cena que, em minha opinião, é a que melhor retrata os temas da divisão, dos ideais e da castração, é a cena inicial do filme, em contraponto com a cena final. No começo do filme, vemos Rebecca acompanhar uma mulher-bomba. Ela, enquanto profissional, não pode intervir no que está acontecendo, ela está ali apenas para registrar. No entanto, em certo momento ela percebe que talvez a bomba exploda perto de um local onde estão muitas pessoas, principalmente crianças. Nesse momento, a Rebecca mãe, buscando salvar aquelas crianças, acaba interferindo na situação, o que provoca um acidente em que ela mesma se machuca. Portanto, no momento em que ela quis ser tudo, boa profissional e ao mesmo tempo boa mãe, tentando salvar todo mundo, uma tragédia acontece. Então, antes mesmo do marido trazer esse limite, a impossibilidade desse ideal, de se ter/ser tudo, já se apresentava. 

Em contrapartida, no final do filme uma escolha é feita. Rebecca assume o que quer, mas não sem abrir mão de algo. Ela decide continuar trabalhando e novamente acompanha mulheres-bomba, só que dessa vez uma delas é ainda uma menina. Rebecca fica muito incomodada, mas mesmo assim não intercede. Dessa vez ela apenas observa, mas não sem um pesar. Portanto, ela não vai conseguir ter tudo. Bom, ela vai continuar sendo mãe e vai continuar trabalhando, mas não vai ser perfeita nas duas coisas. E provavelmente desagradou algumas pessoas. Tem algo aí que vai ficar de fora, que vai escapar.  O que para mim se assemelha a um fim de análise, porque o objetivo da análise na neurose é justamente esvaziar esse eu, esvaziar esse narcisismo, ajudando o paciente a se livrar dessas exigências narcísicas para que as coisas possam ser o que de fato são. Rebecca fez uma escolha e nisso algo se perdeu, mas a vida não é mesmo assim? 

“Força Maior”

No filme “Força Maior”, acompanhamos o personagem do Thomas, que está esquiando com a família nos Alpes Suíços. Em certo momento, eles estão almoçando na varanda do hotel, que está próxima das montanhas, e escutam um estrondo. A princípio eles não se preocupam muito, acreditando ser apenas o barulho de uma explosão controlada, prática comum naquela região, que tem como objetivo evitar avalanches maiores. Porém, conforme o barulho e a nuvem de neve se aproximam, eles começam a perceber que talvez seja uma avalanche real e que de fato possam se machucar. Frente a uma possível tragédia, todos entram em pânico e, nesse breve momento em que há uma comoção e todos se desesperam, Thomas, que até parece ter a intenção de segurar o filho, desiste e sai correndo, deixando a família para trás. Só que logo depois observamos que aquela não era uma avalanche real, então ninguém se machuca. Thomas volta para perto da família, e se instaura um clima de constrangimento e mal-estar. 

Penso que no caso de Thomas, a divisão esteja entre quem ele pensa que deveria ser e quem ele de fato é. Por um lado, ser o que se espera dele socialmente, que é o que essa família também deseja: essa ideia estereotipada do que é masculino, um homem corajoso e forte, que protege sua família. Por outro, ser quem ele pode/consegue ser: alguém falho, imperfeito. Diante desse real, a forma que ele lida é através da negação, quase como uma preservação narcísica. Thomas afirma, “não, imagina, eu não saí correndo, isso nunca aconteceu”. Só que a esposa não aceita essa resposta, e fala que quer uma visão compartilhada. Ou seja, que ele também possa dizer que saiu correndo, confirmando o que aconteceu. E no momento em que Thomas finalmente reconhece que deixou a família para trás e que falhou, ele desaba. Ele começa a chorar e assistimos a uma cena bastante dramática, em que ele se deita no chão e é acolhido pelos filhos. Sua mulher fica visivelmente incomodada, afinal ela quer que ele corresponda a esse ideal; ela quer que ele corresponda às expectativas dela. 

Então chegamos na conclusão do filme, onde vemos a família novamente esquiando nas montanhas. Porém, uma nevasca faz com que a esposa se perca, e nesse momento minha leitura é que ela, propositalmente, se coloca em uma situação de risco para que o marido possa salvá-la. Uma espécie de reparação narcísica, em que o marido é o herói. 

Logo, um final muito diferente do primeiro filme. Em “Mil Vezes Boa Noite” há um esvaziamento narcísico, um certo reconhecimento de que não se pode ser tudo, e tudo bem. Enquanto que em “Força maior” esse narcisismo é inflado, como se Thomas pudesse de fato corresponder a esses ideais, como se ele pudesse sim ser tudo.

Reflexões acerca do título dos filmes

“Mil vezes boa noite” sempre me soou familiar. Depois me lembrei que é uma passagem de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare. Na varanda, Julieta se despede de seu amado dizendo “mil vezes boa noite”. E essa história tão conhecida nos mostra precisamente esse desejo que é da ordem do impossível. A escolha entre o que a família deseja e o que verdadeiramente quer o casal, que é poder viver esse romance. E, assim como acontece com Rebecca, no momento em que eles tentam ter tudo, onde que eles fingem a própria morte para poderem ficar juntos sem desagradar a família, uma tragédia acontece.

“Força maior” não é o título original do filme (“Turist”), mas foi o nome escolhido para tradução em muitas línguas (inglês, francês, português etc). Este termo vem da área do Direito, e no Código Civil aparece relacionado ao que se chama de Caso Fortuito, isto é, aqueles eventos que são imprevisíveis e inevitáveis, como os desastres naturais (avalanche), e que, por este motivo, isentam as partes de terem que cumprir com suas obrigações legais. Entretanto, descobri que existem divergências quanto ao entendimento que se tem desses termos (vejam só, não é só entre psicanalistas que isso acontece). Alguns profissionais do meio entendem que Caso Fortuito e de Força Maior não significam exatamente a mesma coisa. Caso Fortuito seria aquele evento que é imprevisível e inevitável. Já o de Força Maior, seria o evento que também é inevitável, porém previsível. Fico pensando, o quê, na questão de Thoma, seria previsível, mas ao mesmo tempo inevitável. Penso que o que era previsível é que em algum momento Thomas não daria conta do ideal. Em algum momento ele iria falhar, algo que percebemos ao longo do filme, pois sua relação familiar já apresentava questões. Contudo, era inevitável, porque o ideal é mesmo inalcançável, a divisão sempre existirá. E tudo bem, somos o que somos.

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Serviço

Mil vezes boa noite (A thousand times good night, 2013) 

Direção: Erik Poppe 

Força Maior (Force Majeure, 2015) 

Direção: Rubem Ostlund

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