A miséria da ficção científica em O Problema dos Três Corpos, de Liu Cixin

Por Gustavo Denani

Uma astrônoma constata que a destruição em nome do progresso tecnocientífico é inevitável. Resignada, ela manda uma mensagem para uma civilização alienígena: “Merecemos ser destruídos”. Os extraterrestres recebem a mensagem, e a Terra está com os dias contados. Muitos dias contados, uma vez que há uma distância de aproximadamente 400 anos-luz entre as duas civilizações, e é na velocidade da luz que os algozes viajam. Essa é a história de “O Problema dos Três Corpos”, primeiro da trilogia de Liu Cixin. Trata-se de um livro de hard sci fi, em que os elementos tecnológicos que compõem a narrativa não são simplesmente especulativos, mas têm um embasamento teórico. Dessa forma, o autor tem o mérito de traduzir conceitos abstratos para um público leigo.

Desnecessário dizer que a analogia entre uma civilização tecnologicamente avançada e outra em um estágio “inferior” não é original. No entanto, o apelo da história de Cixin não está na crítica batida do tecnodeterminismo e as violências que essa ideologia determina. Pelo contrário, tecnologia é um imperativo, uma condição para a sobrevivência, tanto na China pós-revolução, em que se passa o começo da narrativa, quanto na preparação da invasão alienígena. Nesse imperativo, são exploradas as escalas micro, como no caso do elétron capaz de derivar outras dimensões de existências, até se tornar uma partícula dotada de cognição, e macro, como no caso das tecnologias de travessia do cosmos.

É igualmente desnecessário pautar uma crítica da obra pelo posicionamento político de seu autor. Não por ser evidentemente problemático o caso de Cixin (no entanto, um autor americano já foi questionado sobre o genocídio indígena ou o pelo complexo carceral que prende majoritariamente negros? Um autor israelense já foi cobrado por uma opinião sobre a existência do território do qual ele ocupa? Pecados chineses têm mais peso, aparentemente), e sim porque o que um autor é não determina os possíveis sentidos de sua obra. É exatamente esse o problema de “O Problema dos Três Corpos”: o sentido da tecnologia (a saber, a razão instrumental antropocêntrica) é tão somente o de dominar, desde árvores até elétrons e estrelas, desde terráqueos até alienígenas. Mas não se trata apenas de uma crítica ao caráter bélico desse modo de tecnologia. Mesmo se não houvesse um conflito, é como se essa noção de tecnologia tivesse uma lógica intrínseca de expansão para as escalas micro e macro, de atribuir funcionalidade tanto para nanopartículas quanto para corpos celestes. Elétrons devem calcular, o espaço sideral deve ser achatado, dobrado, cada estrela deve estar ao alcance das mãos.

É interessante notar como essas proezas tecnocientíficas já são profetizadas em ideologias tecnofetichistas como o “longtermism”. Apoiadas por crápulas como Peter Thiel, trata-se de um projeto de (pós) humanidade para escalas espaciais e temporais maiores do que a da Terra e sua estrela. Em outras palavras, a humanidade tem o potencial de expansão para outras galáxias, e sobreviver para além do ciclo de vida de estrelas, de modo que esforços para problemas atuais, como a mudança climática, seriam menos importantes. 

Se o que há de interessante na ficção científica enquanto gênero literário é a liminaridade entre o possível e o impossível, a fim de que possamos especular novas maneiras de viver no/com o mundo, então qual a relevância de uma história que reitera um senso comum fatalista sobre tecnologia? E o que dizer sobre o sucesso de uma obra que serve para legitimar tanto o desenvolvimento da China, quanto os delírios de um bilionário americano?

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