Os corpos como mercadoria no terror “Pânico Americano” (2022)

Por Daniel Felipe

Alguns filmes são lembrados e debatidos por suas contribuições no que se refere ao trabalho com a linguagem. Outros, pelo contrário, devido ao modo como certos elementos curiosos são ressaltados e, a despeito de sua irrelevância estética, expõem questões bastante presentes em um contexto determinado. Pode-se dizer que Pânico Americano (American Carnage, dir. Diego Hallivis, 2022) pertence a esse segundo viés.

Basicamente, a trama é construída em cima de adolescentes descendentes de latino-americanos que vivem nos Estados Unidos e têm problemas com suas documentações. Suas vidas mudam após uma determinação governamental que legitima sua segregação. Os jovens são presos e apartados de suas famílias. Alguns passam a trabalhar em uma casa de repouso para idosos como forma de redução da pena — basicamente, trata-se de um projeto que os torna membros de um experimento científico sem que eles saibam. Mais que escravos, a analogia proposta na obra é com gados.

A questão imigratória, sempre presente nos Estados Unidos, ganha um status de forte contemporaneidade, nesse filme tão próximo dos dias de Trump no poder. De modo que a perspectiva da narração privilegia o viés dos jovens latinos, em sua sobrevivência. Ou, ao menos, em tese.

Digo em tese pois, a despeito dos retratos bem humanos, no contexto dessa oposição entre gente e gado, a narrativa tem um quê de sadismo velado em seu gozo trivial com a fabricação das mortes. Na construção dos latino-estadunidenses em fuga, eles próprios são tratados pela produção como mercadorias feitas para consumo por espectadores supostamente ávidos por um final feliz protagonizado por um elenco marcado pela diversidade étnica.

Até chegar à vitória, “é gostosinho vê-los se dando muito mal”, o filme nos diz nas entrelinhas. Não se trata de procedimento inédito, é claro: qualquer slasher que se preze trabalha em torno desse mesmo horizonte. Contudo, dificilmente uma produção desse tipo se propõe a surfar em um tópico como identidades culturais.

Nesse sentido, é sintomático que o trabalho tenha apenas uma única cena capaz de produzir alguma potência semântica. Me refiro ao momento em que, fora do asilo, o comportamento dos idosos é similar ao de zumbis em filmes de horror.

Fora isso, Pânico Americano esconde um caminhão de cenas pré-fabricadas que, detrás de uma pauta urgente nos contextos americano e global, capitaliza em cima de boas intenções. O protagonismo latino, afinal, é tratado aqui como mera fatia de mercado — tal qual um pedaço de carne à venda numa geladeira. Não à toa, os títulos original e traduzido são reveladores da natureza do projeto. 

O traduzido “pânico americano” pega de empréstimo o lucrativo nome de uma famosa franquia de horror, e nos fala ao mesmo tempo sobre a injustiça sofrida pelos jovens segregados e sobre a paranóia daqueles que, os temendo, desejam eliminá-los, se possível lucrando em cima deles.

A “carnificina americana” do original, por sua vez, fetichiza à sua maneira os corpos dos adolescentes latinos — num estratagema contra o espectador, no qual nem mesmo a “vitória” do final serve como redenção, uma vez que a perspectiva de uma construção vulgar (porque baseada em clichês) em prol do entretenimento mais banal sobrepuja qualquer grande questão que o filme supostamente quis abordar. 

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Serviço

Pânico Americano (American Carnage, dir. Diego Hallivis, 2022)

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