Por Fernanda Sypniewski
O duplo está presente desde a Antiguidade nas obras de arte, a exemplo a tragicomédia de Plauto: Anfitrião (Amphitruo, 206 a. C.). Contudo, é no Romantismo, no final do século XVIII, momento em que se concebe a ideia de inconsciente e onde se valorizam o sonho e o símbolo, que o tema ganha um caráter trágico, se expressando principalmente na criação literária. O duplo, nesse contexto, é simbolizado por um sujeito que se vê dividido em dois, movido por forças antagônicas que lutam internamente e o levam muitas vezes à autodestruição. Escritores como Edgar Allan Poe, Fiódor Dostoiévski, E.T.A. Hoffmann, Nikolai Gogol e Oscar Wilde, entre outros, criaram textos ficcionais com personagens em luta contra seu lado obscuro ou desconhecido, representado por um sósia, um reflexo no espelho ou um retrato. Desde o século XIX, o tema do duplo ressurge frequentemente em obras literárias e fílmicas, como por exemplo o curta O estudante de praga (1913) – um filme mudo de terror alemão, baseado em um conto de Poe, em um poema de Alfred de Musset e em Fausto.
Na Conferência XVIII de Freud, “A fixação no trauma, o inconsciente”, o autor aborda a fixação em determinada porção do passado de duas pacientes: casos que foram inicialmente apresentados na conferência anterior, “O sentido dos Sintomas”. Nas Conferências Introdutórias (1916-1917), Freud começa a teorizar aquilo que, mais tarde, em 1920, nomeia de “O Infamiliar”, “O Inquietante”, “O Estranho”.
O primeiro caso é o de uma senhora que sofre de severa manifestação obsessiva: ela ia de seu quarto para o quarto ao lado, parava perto de uma mesa no centro do cômodo, tocava a sineta para chamar a criada, pedia-lhe uma tarefa qualquer ou a dispensava sem nada pedir e, por fim, voltava para seu dormitório. A segunda paciente é uma jovem de 19 anos, filha única, que desenvolveu um cerimonial na hora de dormir, que era inflexível: ela precisava de silêncio e, portanto, eliminava todas as fontes de ruídos; a porta de seu quarto tinha que estar semiaberta, o travesseiro maior não podia tocar na madeira da cabeceira da cama, e o menor, sobre o qual ela pousava a cabeça, precisava estar disposto sobre o maior de modo a formar um losango.
Freud questiona: “como, de que maneira e por força de quais motivos uma pessoa assume uma postura tão singular e tão desvantajosa diante da vida?”. Ele pressupõe que tal comportamento seja uma característica geral da neurose, e não uma particularidade dessas duas pacientes. Portanto, trataria-se de um traço geral de toda neurose.
Na segunda parte do texto, Freud expõe o resultado da análise das duas pacientes e pontua algo importante. Enquanto as pacientes repetiam seus atos obsessivos, elas nada sabiam sobre a vinculação com uma vivência passada. A conexão entre a obsessão presente e a vivência passada permanecia oculta, de modo que as pacientes desconheciam os impulsos que as levavam a praticar tais ações. Dessa forma, concluímos que as precondições psíquicas do ato obsessivo não chegavam ao conhecimento da consciência. No momento em que as conferências foram escritas, soubemos que os sintomas são derivados de processos inconscientes, podendo se tornar conscientes sob diversas condições.
O duplo e o inconsciente
A descoberta do inconsciente foi, segundo Freud, um dos grandes insultos ao amor-próprio da humanidade, e talvez a mais sentida. Embora o homem estivesse “humilhado exteriormente, o homem sente-se soberano em sua própria psique”. Afinal, “o Eu não é senhor na própria casa”.
Os dois insultos anteriores foram: a terra não é o centro do universo, proposto por Copérnico, no século XIV; e a descendência animal, proposta por Darwin, no século XIX.
Em 1920, Freud define o “sósia” ou “duplo” como:
“o surgimento de pessoas que, pela aparência igual, devem ser consideradas idênticas, a intensificação desse vínculo pela passagem imediata de processos psíquicos de uma pessoa para a outra pessoa – o que chamaríamos de telepatia –, de modo que uma possui também o saber, os sentimentos e as vivências da outra; a identificação com uma outra pessoa, de modo a equivocar-se quanto ao próprio Eu ou colocar um outro Eu no lugar ele, ou seja, uma duplicação, divisão e permutação do Eu – e, enfim, o constante retorno do mesmo, a repetição dos mesmos traços faciais, caracteres, vicissitudes, atos criminosos, e até de nomes, por várias gerações sucessivas”.
A questão do duplo no filme A Garota Ideal
Os personagens, humanos ou não, são o elo de um filme com o público, uma vez que o espectador vai sentir o que ele sente e viver, por meio dele, aquela história. O personagem mais valorizado dentro de um filme, claro, é o seu protagonista, afinal os acontecimentos giram em torno dele. Além dele, uma obra fílmica possui personagens secundários que, no decorrer da história ou devido ao trabalho do ator, vão se valorizando, ganhando destaque e conquistando a atenção do público.
Um exemplo disso pode ser visto A garota ideal (2007), estrelado por Ryan Gosling. No trabalho, conhecemos os personagens Lars e Bianca. A personagem secundária, Bianca, não é interpretada por uma atriz, mas por um objeto: um manequim. Ela não possui falas, não é animada por efeitos computadorizados e, mesmo assim, é muito relevante para a narrativa.
Lars é um rapaz tímido e introvertido, que vive na garagem da antiga casa de seus pais, onde agora moram seu irmão mais velho, Gus, e sua cunhada, Karin, que está grávida.
Certo dia, durante um jantar em família, Lars apresenta sua namorada, Bianca, uma boneca que, ele crê, é uma mulher de verdade. Preocupados, Gus e Karin decidem procurar a ajuda de uma profissional de saúde. Esta, por sua vez, recomenda que o casal entre na fantasia de Lars, e trate Bianca como uma pessoa real, enquanto Lars lida com suas questões.
Ao longo do filme vamos entendendo a “função” de Bianca na vida do protagonista. A mãe de Lars morrera em seu parto e seu pai manteve uma relação distante com ele e o irmão. Não fica claro no filme, mas parece que seu pai lidou muitos anos com um luto interminável. Não sabemos ao certo quem cuidou de Lars, mas seu irmão diz se sentir culpado por ter deixado a casa o mais cedo que pôde, deixando Lars sozinho com o pai. Gus acha que poderia ter feito diferença na vida do irmão.
Além disso, a gravidez da cunhada gera muita angústia em Lars, pois ela é para ele alguém muito especial, e ele tem medo de perdê-la, assim como aconteceu com sua mãe. É nesse momento da história que aparece Bianca. Lars elabora uma história cheia de detalhes sobre a vida de sua namorada: ela é uma mulher idealizada e se torna seu apoio emocional. Para ele, a boneca tem vida, gostos, vontades, desejos.
A família e toda a comunidade participam desse fingimento: acontece uma espécie de comunidade ideal regida pela solidariedade, onde todos se envolvem para ajudá-lo, se esforçando para integrar Bianca, que passa a ter atividades diárias e uma agenda própria. Isso se mostra fundamental para o tratamento de Lars, que, aos poucos, se torna um rapaz comunicativo e alegre, que busca se envolver com sua família e amigos.
Percebe-se que Lars projeta em Bianca muitas características comuns a ele. Por exemplo, em uma das sessões com a médica ele conta que os pais de Bianca morreram quando ela ainda era bebê, mas que ela não tem pena de si mesma: apenas quer ser normal, e que todos a tratem normalmente.
O relacionamento de Lars e Bianca é tão real que chega a passar por crises, brigas e términos. Bianca tem uma função primordial: a de mediadora entre a realidade interna de Lars e a realidade compartilhada que ele vai aprendendo a habitar.
Então, o que permite que o público também enxergue Bianca como alguém, e não como um objeto? Quando começamos a conhecer a história da “boneca”, ela dependia do protagonista para existir, logo configurando-se como uma parte de Lars – seu duplo.
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Serviço
A garota ideal (The Real Girl, 2007 – diretor Craig Gillespie)


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