Cinema italiano: Umberto D, uma não-trama?

Por Valter Ribeiro

Em Story, manual de escrita de roteiro cinematográfico de Robert McKee, há um capítulo sobre os critérios de definição do design clássico da trama, núcleo dramatúrgico do filme. A trama é condicionada por uma transformação na vida do protagonista na duração fílmica. Ao final da história, ele será uma pessoa diferente do que era no início. Umberto D (1952) de Vittorio DeSica e Cesare Zavattini é ilustrado como um longa-metragem de não-trama. Nas palavras do próprio autor:

[…] as estórias mantêm-se estáticas, sem um arco. […] A estória dissolve-se em retratos, ou num retrato da verossimilhança ou num do absurdo. Chamo esses filmes de Não-Tramas. Apesar deles nos informarem, nos tocarem e terem sua própria retórica ou estrutura formal, eles não contam uma história.” (MCKEE, Robert: Story – p.66-67, 1997)

Essa definição, aplicada ao filme de DeSica, torna-se conflitante com outra definição de McKee, denominado Antitrama, onde a trama é explicitamente manipulada para sintetizar determinada mensagem ou tonalidade do filme. O exemplo mais conhecido é a obra anárquica de Jean Luc Godard, onde é evidente a mão do diretor em ofuscar qualquer suspensão de transparência da história. Umberto D é o estágio máximo da proposta estética do roteirista Zavattini, também teórico do neorrealismo italiano. Ele idealizava a realização de um filme de noventa minutos, em tempo sincronizado com o transcorrer da realidade e sem cortes, onde os atos dramáticos seriam réplicas das ações banais que executamos no cotidiano.

Mas afinal, Umberto D contêm uma trama ou não? Existe algum critério de transformação do personagem ou são blocos de fragmentos expositivos?

Em oposição às outras obras circunscritas no neorrealismo italiano, Umberto D apresenta um universo dramático onde as propostas coletivas são impossíveis. A solidão impera e nenhum personagem, com exceção da criada Maria, parece empatizar com o protagonista. O filme se passa em Roma no ano de 1952. A guerra estava terminada a quase uma década. O país se recuperava economicamente a passos largos com auxílio monetário dos antigos Aliados. Com a queda do Fascismo, uma frente democrática, liderada pelo Democracia-Cristã (de centro direita), havia unido os cinco principais partidos anteriores à Mussolini para a criação de uma nova Constituição, promulgada em 1948. Dentre os partidos da Frente Ampla estavam os Socialistas e os Comunistas, fortes e democráticos no contexto italiano. Com a estanca da ameaça fascista e a estabilidade social, os partidos retornaram à posição de oposicionistas, perdendo seus cargos governamentais. Umberto D parte deste contexto, onde a vida do protagonista é análoga à vida nacional da Itália.

O filme ainda bebe da fonte neorrealista. O elenco é composto por não-atores, as gravações externas destacam contextos sociais através da arquitetura e figuração, o tema é contemporâneo e de moldes jornalísticos, o estilo remete ao documentarismo…, mas o filme anuncia o encerramento do neorrealismo quanto movimento. Assim como as bilheterias que haviam despencado em filmes do gênero, os diretores do movimento começavam a trilhar o próprio caminho autoral que desembocaria na Era de Ouro do Cinema Italiano nos anos 60. Rosselini trabalhava com Ingrid Bergman, Visconti se direcionava para produções de grandeza operística e assistentes, como Fellini e Antonioni, lançavam suas primeiras produções.

Em Umberto D, o tema central é a solidão. Seja a solidão de um cidadão idoso que recusa abandonar seu dormitório, seja a solidão de uma empregada grávida que lida com a irresponsabilidade fugaz do pai da criança. A solidão é o cimento que liga todos os fragmentos da trama. A forma do filme, de molduras do cotidiano independentes entre si, complementa o conteúdo da história. Por outro lado, o protagonista tem um objetivo único que permeia a trama, o de não ser despejado. Durante o filme inteiro, Umberto tenta acumular o dinheiro para um mês de aluguel e busca estratégias jurídicas para não ser despejado… Mesmo que essas estratégias soem vazias. A proprietária está convicta na expulsão do inquilino. O quarto de Umberto é violado de inúmeras maneiras, seja através da locação para encontros ocultos de amantes, seja através da demolição de suas paredes sem o consentimento do idoso. Mais do que uma vítima do sistema, Umberto é um teimoso que insiste em não mudar.

O filme não nos informa sobre a história pregressa do protagonista. Não faz diferença para o enredo se é um solteirão ou um viúvo, um ex-simpatizante do Fascismo ou um partisan, por exemplo. O que importa é o presente e no presente Umberto está sem dinheiro, vendendo seus bens e na divisa da mendicância. Os antigos colegas de trabalho o tratam como falecido, as pessoas que percebem sua miséria se afastam. Tudo converge para o tema da solidão sem que soe melodramático. Umberto é um personagem complexo e fiel a batalha para preservação de sua honra. Ele recusa se apresentar como miserável, mas a audiência percebe seus conflitos. André Bazin compara o estilo de direção de Vittorio DeSica com o de Rosselini. O primeiro tende a ser mais direto com os planos próximos dos rostos expressivos, ao contrário de Rosselini que enfatiza a apresentação completa da ação, em planos mais abertos, para compreendermos o personagem através de suas movimentações no espaço. Bazin exalta a capacidade que DeSica tem de transformar um plano próximo de rosto numa superfície expressiva de leitura, tal qual a tela agisse como a descrição de um texto literário. As expressões faciais são ambíguas, abrem possibilidades interpretativas na própria materialidade das luzes fixadas na tela. 

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Umberto D é um filme aberto para mergulhos subjetivos nos personagens principais, diferente da objetividade didática do neorrealismo. Os planos fragmentados são coesos porque surgem após cena introdutória, de design clássico, onde idosos são repelidos por policiais numa manifestação pública. Dada a tonalidade e conquistada a atenção da audiência, somos introduzidos ao cotidiano de Umberto Domenico Ferrari e da criada Maria. O filme é reconhecido pelas duas sequências longas de ações erroneamente descritas como ausente de valores dramatúrgicos. Umberto tenta dormir, mas sofre de insônia por vários empecilhos. Ele está preocupado com uma potencial doença e com meios para conseguir dinheiro. Maria engravidou de um militar e não sabe o que fará depois de ser expulsa da casa pela patroa. As ações ditas banais ganham peso quando associadas com o contexto das personagens. Essas ações não apresentam conclusões no filme, mas o importante é o presente delas. Ao não apresentar um fechamento, DeSica consegue universalizar os sofrimentos dos personagens.

O quarto de Umberto e a cozinha onde trabalha Maria ganham ares de analogia da subjetividade, numa estratégia dramatúrgica chamada chambers of mind. O espaço torna-se análogo aos fluxos mentais dos personagens. A destruição e desrespeito que ocorre no dormitório de Umberto, assim como as formigas e tarefas domésticas que ocupam o tempo de Maria, são refrações das suas subjetividades. A banalidade e a fragmentação expressam esse fluxo.

Umberto D encerra o ciclo do neorrealismo e apresenta temas e ferramentas que serão soberanas no cinema moderno procedente. Com o Milagre Econômico da Itália nos anos 60, filmes que tematizam o vazio existencial numa sociedade materialmente bem-sucedida, como na obra de Michelangelo Antonioni e Ermanno Olmi, se tornarão predominantes. A sociedade continuará a ter problemas que precisam ser apresentados e refletidos.

A afirmação de Umberto D ser uma não-trama não faz sentido. Embora fragmentado e expressando o cotidiano, percebemos que existe uma construção coesa no design da trama. O erro está em classificar filmes em caixas e grupos, quando eles apresentam sua própria individualidade. Com exceção de Cesare Zavattini, nenhum realizador italiano admite ter feito parte de um movimento chamado Neorrealismo Italiano. Eles apenas contavam as histórias que lhe pareciam pertinentes e, assim, cativavam a audiência.

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