A vida dos textos: notas sobre a reedição de “Crimes à Moda Antiga” 

Por Daniel Felipe

Crimes à Moda Antiga: Contos Verdade, obra que ganhou sua primeira edição em livro no ano de 2004 pela Publifolha, reúne textos que Valêncio Xavier publicou na imprensa paranaense no final dos anos 1970. Os escritos rememoram crimes que se tornaram midiáticos, ocorridos entre os anos 1903 e 1930. No final de 2023, o trabalho ganhou uma edição pela DarkSide Books, cujo trabalho gráfico investiu fortemente num viés pop – uma roupagem atrativa em um nível que até então a obra do autor não havia experimentado (nem mesmo com a Companhia das Letras).

Nesse sentido, há que se reconhecer a tentativa – bastante oportuna, diga-se – de aproximar a produção de Xavier do True Crime contemporâneo – entendido aqui menos como o pertencimento a certa tradição que tensiona ficção e realidade, mistério e criminalidade, imprensa e morbidez, arquivo e tempo, com a qual o artista sem dúvida dialoga, do que como filão de mercado deveras lucrativo. Tal consideração nos leva, precisamente, ao parágrafo inicial da obra. Vejamos.

Caso o leitor tenha a oportunidade, permita-se realizar um exercício: leia, primeiro, o parágrafo inicial de Os Estranguladores da Fé em Deus, conto que abre o volume, na edição de 2004. Em seguida, abra a edição atual e efetue a mesma leitura. Logo você notará que a abertura do texto de 2023 tem diferenças sutis, porém significativas.Trata-se de uma versão que remove certo aspecto truncado da redação de Xavier – claramente, um recurso estilístico, que opera como elemento de sentido. O intuito da publicação atual, parece, é facilitar e tornar fluida a leitura – ou, supostamente, “melhorar” o texto, ao menos em seu início.

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O detalhe, é claro, para muitos passa despercebido. Antes de demonizar a escolha editorial, é interessante que se perceba a consonância dessa edição com o que é levantado pelo próprio conto, isto é, como ela reverbera as relações entre texto e tempo, narrativa e verdade, vida e transformação, tão bem tematizadas por Valêncio ao longo do volume. 

No enredo do conto em questão, Estranguladores, lemos a história do assalto à joalheria de Jacob Fuoco, que teve, na ocasião, um de seus sobrinhos assassinado. Logo a investigação chega aos nomes de Rocca e Carletto, que passam por um extenuante julgamento, repleto de reviravoltas registradas pela mídia. A partir da tomada declaratória, a pluralidade discursiva deixa a verdade esfacelada. Seriam Rocca e Carletto bandidos ou bodes expiatórios? 

Imagens da disposição gráfica dos elementos nos contos de Valêncio Xavier

O interesse coletivo pela história, com suas muitas guinadas, é grande a ponto de gerar um filme sobre o caso, assim descrito pelo narrador:

Enfrentei filas e o assisti várias vezes, sempre com interesse, pois o sr. Alberto Leal, vez ou outra, retira-o de cartaz para suprimir cenas que lhe pareçam imperfeitas e acrescentar outras, conforme novas verdades que vão surgindo sobre os crimes de Rocca e Carleto.

Atualmente, o filme não está em exibição. Acredito que esperam a sentença final do júri para nele incluírem as cenas do julgamento. Considero muito interessante essa idéia do sr. Alberto Leal de ir acompanhando em filme este fato real que tanto comoveu a opinião pública, acrescentando a ele os acontecimentos e idéias que vão surgindo com o desenrolar do tempo e suprimindo as cenas que perderam o interesse. Sendo assim, o filme nunca estará terminado e se tornará cada vez tão real quanto a própria vida.

A primeira vez que assisti, o filme tinha uns trinta minutos de duração; atualmente tem mais de quarenta. Se o sr. Alberto Leal persistir em sua empreitada, daqui a uns 96 ou mais anos teremos um filme com várias horas de duração, onde estarão registradas as imagens, depuradas pela sabedoria do tempo, destes filmes que tanto marcaram nossas vidas e que, por certo, marcarão as vidas daqueles que irão nos suceder. 

Teria todo grande texto o mesmo destino de se transformar com o passar do tempo, assim como o  filme descrito ao final do conto? A opção editorial, parece, insinua que sim. 

De qualquer forma, e a título conclusivo, vale dizer que os crimes à moda antiga apresentados por VX jogam precisamente com os artifícios das linguagens, dos discursos, da memória – ou com o choque entre as materialidades dos registros e as subjetividades, o que coloca as temporalidades e a própria ideia de “verdade” em xeque a todo momento. E isso é de uma grandiosidade, a qual contrasta com uma aparente despretensão da escrita. 

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Serviço

Crimes à Moda Antiga – Contos Verdade, contos de Valêncio Xavier

Ilustrações de Valêncio Xavier e Sergio Niculitcheff

DarkSide Books, 2023

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