Por Fernanda Sypniewski
Abîmes Ordinaires é uma coleção de textos escritos pela psicanalista francesa Catherine Millot e publicada em 2001, que apenas no ano passado chegou traduzida em terras brasileiras. Trata-se de um testemunho do seu percurso de análise: Millot relata uma experiência interior particular, que, entre outras coisas, a levou à psicanálise devido ao enigma que representou. Essa experiência a conduziu até o consultório de Lacan, cuja análise ressoou em suas leituras pessoais sobre o misticismo.
No livro, as palavras de Millot são ecos de uma analista que se dedicou a falar sobre os aspectos mais profundos da feminilidade, assim como recomendado por Lacan. Por essa razão, a obra é dotada de grande singularidade, o que a torna difícil de ser classificada.
Eis aqui minha vida mais secreta.
As experiências narradas por Millot estão ligadas à “perda de si” e à “dissolução do eu”, vivências que ela descreve como uma oscilação entre a angústia, o desamparo e o vazio sereno, presentes em momentos da infância: de repente, o mundo se esvaziou, num instante ficou deserto, nem antes, nem depois, nem pais, nem ninguém. Por alguns segundos, eu fiquei sozinha, absolutamente.
Em outro episódio, anos depois, lemos:
O vazio e, mais ainda, o infinito de um espaço sideral que se abriu. Uma cisão brutal tinha me arrancado de mim mesma e me levado a anos-luz dali, deixando um eu que não era mais nada para mim.
Encontramos no misticismo estados semelhantes aos descritos por Millot, sob o nome de “voo/roubo de espírito”: uma forma de êxtase, um arrebatamento. Santa Teresa, no século XVI, falava do voo do espírito, no qual parece ser arrebatado o espírito com uma velocidade que dá medo (…) verdadeiramente parece que alma se separa do corpo, porque se vê perder os sentidos e não se entende para que. A Santa, em sua obra, descreveu experiências da vida contemplativa e espiritual importantes para a ascensão da alma. Não à toa, em seu relato Millot se refere ao Padre Jesuíta Augustin Poulain, que no início do século XX publicou Des grâces d’oraison – um tratado teológico sobre oração, misticismo e direção espiritual, texto que segundo a psicanalista é um roteiro dos sinais e das etapas da oração contemplativa.

O processo de análise, para Millot, era similar a uma tentativa de ascese não muito distante de uma busca mística, mas com método – além das vantagens da laicidade. Passar por uma análise, ela pensa, consiste numa sucessão de despojamentos. Trata-se de se livrar de todas as ilusões, engodos e fingimentos, como quem descasca uma cebola, até chegar ao real: ao nada, talvez, ou então a algo que resistisse absolutamente, algo em que acreditar.
Para Lacan, as experiências de vazio de Millot poderiam ser descritas como Gelassenheit, ou seja, como experiências de serenidade ou deixar-ser: tal era a sua maneira de acolher as coisas, que sempre me deixava desconsertada e aliviada porque ele dava, ao nomeá-lo, legitimidade ao que tinha parecido inadmissível. Lacan começava por aí: fazendo um sinal de reconhecimento para você.
Nos escritos, Millot revela que em seu percurso analítico buscou nos escritores – Robert Mussil, Maurice Blanchot, Arthur Koestler, Henri Michaux, entre outros – e na literatura experiências comuns à sua. Por indicação de Lacan, lê “O problema do amor na idade média” de Pierre Rousselot, no qual o autor retraça o debate entre a concepção física e a concepção extática do amor: o amor atinge seus limites num paradoxo insuperável, levando ao rigor extremo, não podendo dizer nada sem nos contradizer. Lacan, segundo Millot, sustenta que é aí que tocamos o que ele nomeia como pedaços do real:
Ainda significa alguma coisa, esse esquecimento do ideal de salvação, justamente em nome do amor ao Outro. É a partir desse momento que entramos no campo do que deveria ser o amor, se isso fizesse algum sentido. Só que é a partir daí que isso se torna absolutamente insensato e é isso o interessante: é perceber que quando se entrou num impasse, quando se chega ao fim, é o fim, é aí que está o real.
Era exatamente isso que preocupava Millot: ela queria saber o que havia de real nas suas experiências (e que outros pareciam ter vivido também), nas quais a perda e a salvação formam um estranho nó, fora de qualquer referência religiosa.
O êxtase teria como condição a derrelição, isto é, consistiria na inversão que se opera quando se consente nele. O que Millot nomeia de derrelição é o estado de ser entregue sem defesa ao que pode te destruir – aquilo que Freud nomeia de Hilflosigkeit, que tem seu protótipo no estado do bebê ao sentir que nada nem ninguém responde ao chamado premente de sua necessidade ou de alguma urgência vital. É aí que, para Freud, se encontra o trauma originário: modelo de todos os outros, e em relação ao qual a angústia representaria sua primeira defesa.
Leia mais: psicanálise
A derrelição, segundo Millot, é vivida na falha do recurso ao Outro como instancia tutelar. Esse Outro, como proteção primitiva, aparece como aquele mesmo de quem vem o perigo, já que estamos à mercê de sua boa ou má vontade, de seu desejo enigmático, quando não de seu gozo. Em frente a esse desejo, a esse gozo que pode ser a perda de si, o sujeito tentará então desarmá-lo, erguer contra eles o baluarte do amor, reconduzindo assim uma dependência que durará a vida toda, mesmo que as faces do desamparo mudem.

Abismos ordinários é uma leitura fundamental não só para aqueles que estão no percurso de análise, mas para toda e qualquer pessoa que se deixa ser capturada pelos enigmas que compõe. Conforme as palavras da psicanalista Sonia Leite, Millot investe em “uma escrita que insiste na busca de um dizer verdadeiro, a partir dos diálogos construídos com a arte e a literatura”.
*
Serviço
Abîmes Ordinaires (2001) – Abismos Ordinários (2023), de Catherine Millot
Tratução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe
Editora 7 Letras


Deixe um comentário