Por Fabiana Pequeno
O que a busca de um sonoplasta pelo significado de um som pode ter em comum com a busca por sentido durante a análise? (O texto contém spoilers sobre o filme).
O processo analítico, que se dá através da fala, requer do analista um manejo simbólico do discurso do paciente para que o sentido possa aparecer. E esse manejo se dá a partir do significante. Na língua portuguesa, entendemos que a relação entre significante e significado produz um signo, que representa algo para alguém. Por exemplo, a relação entre a palavra “árvore” e a árvore em si faz com que a imagem da árvore signifique algo para nós. Entretanto, para Lacan essa seria a dimensão imaginária da linguagem. Ele nos mostra que existe uma primazia do significante sobre o significado, entendendo que o significante pode representar qualquer coisa. E é através da cadeia significante, da relação que se faz entre os significantes, que se encontram esses outros sentidos no discurso do paciente. Essa seria a dimensão simbólica da linguagem, pois estabelece a relação entre dois elementos, portanto relação dialética, onde um significante está em relação ao outro, se fazendo presente a partir de uma ausência. Uma cadeia onde os significantes são organizados simbolicamente e produzem efeitos de metáfora e metonímia. O analista promove esse encadeamento ao pedir associações livres e ao fazer perguntas. Perguntas essas que abrem para sentidos possíveis, e que mostram que aquilo que o paciente diz pode falar de outras coisas, que não só o que aquele significante costuma representar. Perguntas como: “como assim?”; “não entendi, o que você quis dizer com isso?”; “me explica melhor?”; “o que mais isso pode dizer?” e “que outras palavras você usaria para dizer o que está dizendo?”. Há um desdobramento do sentido para que seja possível encontrar sentido. Uma relação dialética em que o que vem antes pode ser lido à luz do que vem depois. E o efeito simbólico retroativo, produzido também pelo corte, é que dá sentido ao discurso e permite que o paciente não fique alienado ao significante, pois é essa alienação que o adoece. O objetivo da análise é mesmo esse paradoxo, em que se busca sentido para esvaziá-lo e, ao mesmo tempo, ampliá-lo, de forma a livrar o paciente do aprisionamento significante, do sentido que fica cristalizado.
Concluindo, quando acreditamos compreender o discurso do paciente, corremos o risco de fazer um manejo imaginário deste discurso, onde há uma ilusão de compreensão. Dessa forma, a alienação ao significante se mantém, pois acreditamos que a nossa interpretação é a verdade, quando na realidade o que escutamos é a verdade do sujeito. E é para não termos uma ilusão de entendimento, que nos colocaria alienados em relação ao significante, que perguntamos para o paciente o que aquele significante significa para ele, tendo o sentido como efeito do encadeamento dos significantes.
E de alguma forma esses conceitos atravessam a trajetória do personagem Jack Terry quando surge para ele a pergunta: será que o significante por ele registrado, no caso um som, poderia significar alguma outra coisa, que não o que ele havia imaginado?
Em “Blow Out” (título no Brasil: “Um tiro na noite”), filme estadunidense de 1981 dirigido por Brian De Palma, acompanhamos Jack Terry. O personagem, interpretado por John Travolta, é um sonoplasta que trabalha com Cinema e, portanto, é responsável por criar e reproduzir os diferentes sons, ruídos e efeitos sonoros de um filme, de forma que o áudio possa complementar a imagem, ajudando a construir a narrativa. Durante um trabalho de campo em que está capturando sons na natureza para incorporá-los a uma película, ele acaba testemunhando um acidente. Ele escuta um estampido e observa um carro que perde o controle e cai em um rio, submergindo. Ele se envolve com o acontecimento ao salvar a personagem de Sally, mas os outros passageiros acabam morrendo, sendo um deles uma figura política importante.
À primeira vista, a interpretação que Jack faz dos sons que registrou indicam mesmo um acidente, no qual o pneu do carro estoura, provocando o descontrole do veículo (dimensão imaginária). Porém, ao analisar os sons registrados naquela noite, o sonoplasta começa a se questionar se eles poderiam ter outras representações, dando outro sentido à cena. Poderíamos dizer que há também aí uma busca por desalienação ao significante. Jack passa a reconstituir o episódio que testemunhou através do encadeamento de sons, buscando outros sentidos para eles. E nesse processo de construção de sentido, ele relaciona um som ao outro, e os sons às imagens que foram capturadas por um fotógrafo que também estava presente no incidente. Durante essa análise, ele também questiona Sally e outros envolvidos para ter diferentes perspectivas sobre o ocorrido, decifrando o enigma a partir da ampliação de sua percepção. Ele retoma então essa cadeia de sons e imagens para se dar conta de que o som que escutou de estouro era o som de um tiro que atinge o pneu, e que o acidente foi, na realidade, uma tentativa de assassinato. Enquanto os envolvidos nesse escândalo torcem para que essa ilusão de compreensão se mantenha, isto é, que o público acredite que o que aconteceu foi apenas um acidente, Jack busca a dimensão simbólica do ocorrido, ampliando o sentido dos significantes que registrou. Ele é um dos poucos que consegue enxergar/escutar a cena pelo que ela de fato é, não se alienando ao sentido imposto pela mídia e pelos autores do crime.

Ao mesmo tempo em que a desalienação alivia a angústia de Jack, permitindo que ele decifre a cena, há também um pesar nessa constatação. A morte da personagem de Sally nos mostra isso. No começo do filme, o produtor com quem Jack trabalha se queixa dos sons gravados para um assassinato que acontece na história. Os sons em específico são gritos de pavor e dor, encenados por atrizes. Porém, esses gritos não convencem o produtor (e o próprio espectador), pois parecem pouco críveis. Ao final do filme, os gritos que Sally emite enquanto é assassinada são registrados por uma escuta que ela estava usando no momento do crime. Jack então usa esses sons para o seu trabalho, e desta vez o produtor parece muito satisfeito. A simulação da dor e do medo não foram suficientes. Só o grito real, e não sua imitação, pôde expressar o horror da cena. E essa é a trajetória de Jack ao longo do filme. Ao se dar conta de que o acidente foi uma tentativa de assassinato, ele também entende que as coisas são o que são, por mais duras e dolorosas que sejam. A inevitabilidade do real nos comunica que não se pode escapar da castração e da falta.

Blow Out X Blow-Up
Brian de Palma não disfarça sua inspiração para a criação de Blow Out. O filme faz uma clara referência ao filme de Michelangelo Antonioni, “Blow-Up”. Na película de 1966, baseada no conto “Las babas del diablo” de Julio Cortázar, o fotógrafo Thomas percebe que pode ter registrado um assassinato através de suas lentes, mas só se dá conta disso depois de um segundo olhar. Jack parte do som e Thomas da imagem, mas suas trajetórias convergem pelo desafio de reconstruir uma narrativa de algo por eles escutado/observado.

Ao pensar a questão do significante imaginário no cinema, o autor Christian Metz nos diz que os filmes repousam, a partir do significante, sobre o imaginário da fotografia e da fonografia. O significante imaginário como algo que está presente, mas também ausente. O visível/audível que não está lá. A experiência do cinema consiste nessa presença-ausência, mas os dois profissionais representados nestes filmes querem aproximar representação e significado e buscam, cada um à sua maneira, dar consistência ao que os olhos e ouvidos captam.
Thomas busca confirmação para sua percepção voltando ao parque onde registrou as fotos, e de fato encontra um corpo. Só que um som o assusta e ele, sem sua câmera, não consegue comprovar o que viu. Ele procura alguém que possa acompanhá-lo para atestar o que ele está vendo, como se duvidasse do próprio olhar. Porém, frente a impossibilidade de encontrar alguém que faça esse testemunho, ele retorna ao parque sozinho, mas não vê corpo nenhum. Fica a dúvida se houve ou não um assassinato. A cena final, na qual o fotógrafo está deixando o parque e nota mímicos jogando tênis, aponta uma saída para Thomas. Ele observa a cena de algo que não está lá, mas que se pretende estar, afinal os artistas não têm bola, nem raquete. Quando a bola imaginária cai para fora da quadra, Thomas a recupera e a joga de volta para os tenistas-mímicos. Ao se distanciar da quadra de tênis, ele pode escutar o som de uma bola sendo rebatida de um lado para o outro. O som real de uma bola atingida por uma raquete, bola essa que estava e não estava lá. É nesse momento que o personagem parece perceber que a materialidade ultrapassa os limites do que é visível, e depende das significações que atribuímos à realidade.

Jack tem mais sucesso em confirmar suas percepções, conseguindo chegar à realidade material dos acontecimentos associando som e imagem, além de outras provas que obteve ao longo do filme. Porém, sofre um dano narcísico ao não conseguir salvar Sally. E acho curioso que, ao analisarmos o significado da palavra “blow out”, descobrimos que além de significar algo que se rompe a partir de uma pressão, como um pneu que estoura com o impacto de um tiro, também significa decepcionar alguém por não ter conseguido fazer algo que haviam combinado. Os esforços de Jack não foram suficientes para manter Sally segura.
Já “blow up”, no contexto da fotografia, significa ampliar a imagem. Entretanto, no dicionário também aparece como algo que se enche com ar, como uma bexiga. Assim como o imaginário de Thomas, inflado pelas representações que ele deu à imagem. Já a narrativa assistida no processo de análise é aquela em que o significante, tal qual a foto e o balão, precisa ser ampliado/expandido através da cadeia significante, para então se esvaziar.


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