Por Gustavo Denani
O capitalismo é uma máquina de produzir crises. Marx diagnosticou aquela que é o seu próprio motor, a crise da acumulação do capital. De modo muito resumido, trata-se do momento em que o desenvolvimento tecnológico e infraestrutural chega a um nível em que o roubo do trabalho excedente feito pela burguesia sobre o proletário não é mais o suficiente para o crescimento do capital. Quando essa crise bate à porta (e quando o proletário não está organizado para suprimir a classe que lhe oprime), criam-se novos mercados, com novas demandas e novas fronteiras de exploração. Essas fronteiras, como é de se imaginar, não são ilimitadas. O antropoceno é a expressão ecológica desse limite, que se apresenta como crise existencial em seu sentido mais bruto, uma vez que o capitalismo (junto a seus participantes voluntários e involuntários) não está apenas colapsando em suas próprias engrenagens, mas levando consigo as condições materiais para a reprodução da vida na Terra.
É sob a perspectiva dessa crise que a exposição coletiva “Heroísmo é Botulismo” se baseia. Com a curadoria de Érica Burini, as obras, que ocupam o Ateliê 397, são profundamente inspiradas em pesquisas e reflexões que tiram o humano do centro da agência e do pensamento. Proponentes dessa abordagem, como Bruno Latour, Donna Haraway e Anna Tsing, sugerem uma compreensão sobre agência feita a partir de alianças entre humanos e não-humanos, voltando assim a atenção para processos elementares que compõem nossa existência. Basta olhar para nossa digestão: o trabalho feito pelos órgãos não é somente humano, mas conta com bactérias que começam a digestão desde a nossa boca. Mais do que isso, a digestão começa pelas nossas mãos, preparando a comida, e pelos instrumentos que a cozinha. Dessa forma, nós, humanos, somos atravessados por alianças desse tipo, pois o não-humano nos cerca tanto no modo pulsante de um organismo quanto na materialidade de artefatos que produzimos.
Tal abordagem, portanto, não trata de mais um esforço para uma tomada de consciência ecológica, e sim apontar que, da mesma forma que o humano não é o centro do mundo, existem mundos criados por não-humanos alheios a esse primata usuário da linguagem. Nesse sentido, a vida humana é apenas um ponto em uma rede de relações contingentes. O que o sujeito moderno tenta fazer é dar certa estabilidade a essa transiência ao impor uma hierarquia sobre aquilo que sua (nossa) epistemologia considera “natural”, para assim exercer seu domínio. Em Cooperativas, Licida Vidal, embaralha essa hierarquia ao montar uma estrutura feita de materiais como placas solares, arduíno, bomba d’água e sementes. Três cabos de enxada amarrados como tripé sustentam recipientes que colocam em fluxo o material que eles contêm. Enquanto um arranjo “fito-cibernético”, Cooperativas parece ser um contraponto a uma tendência tecno-solucionista de fazendas verticais. Se estas são estruturas rígidas, cartesianamente planejadas e de plantação intensiva, a estrutura de Vidal é frágil, sensorialmente rica e de baixa escala, convidando o observador a um olhar atento para decifrar seu funcionamento e deslocar o ponto de vista tecnocêntrico para outras formas de existência.
Esse deslocamento coloca em questão categorias elementares que produzem nossa subjetividade, como a da propriedade privada e a premissa lockeana de que um sujeito livre possui a si próprio. Como se sabe, para garantir a manutenção desse direito fundamental, temos o Estado, que regula os tipos de propriedade, sempre tendo o humano como sujeito de direito e todo o resto não-humano passível a se tornar propriedade. Isso, por sua vez, estabelece uma relação unilateral entre natureza e cultura, em que desta emana a agência para explorar aquela, produzindo-se assim propriedade e valor a partir do trabalho. Mas e se partes da natureza pudessem se tornar sujeitos de direito? Em Animismo Jurídico, João Machado se inspira em recentes movimentos políticos que reivindicam esse estatuto a elementos da natureza, como montanhas e rios. Para isso, Machado monta um objeto no qual um projeto de lei que dá direito legal sobre a Serra da Mantiqueira descansa sobre uma cadeira de madeira. Esse tópico tem relação com acadêmicos como Marisol de la Cadena, que estudou a resistência dos nativos que vivem no atual território do Peru contra a exploração de minérios sobre Ausangate, uma entidade que eu ou você enquanto modernos miseráveis consideramos ser uma montanha como tantas outras, mas que para os Quechua é tão real e fundamental quanto a ideia de propriedade privada o é para nós.
O projeto de lei sustentado sobre a cadeira de madeira divide espaço com elementos da natureza como pedras, ramo de flor, jarro d’água e folhas secas, remetendo a não-humanos ocupando indiferentemente o maquinário legal. Ao evocar a questão de não-humanos como detentores de direitos, Animismo Jurídico lida com o limite epistemológico institucional que temos para uma relação com seres e modos de vida que não cabem na modernidade. Não falo apenas de um earth being dos Andes, mas do próprio potencial de uma obra de arte (institucionalizada, parte de um circuito, potencial mercadoria) como uma linha dentro de uma cultura e subjetividade moderna. Mais precisamente, me pergunto o que há de alteridade radicalmente não-humana em um objeto com nome, autor, materiais utilizados, para além de sua representação de algo maior, que não cabe em uma galeria de arte. De modo análogo, penso na real eficácia de uma entidade não-moderna que, no final das contas, precisa de uma tutela de um homo sapiens. E não qualquer homo sapiens, mas um reconhecido pelo Estado, enquadrado dentro de categorias jurídicas, tendo sua cosmologia devorada e digerida (sem bactérias, e, portanto, uma péssima digestão) em documentos, bits, informação. Se o limite é a representação, então não há a produção de algo novo, seja ele político ou estético.
Por fim, há uma obra que me chamou a atenção pela simplicidade. Ela se chama Fim do Capitalismo, de Jarbas Lopes, e trata-se de uma gravura, cujas letras em relevo dizem…”. Esse enunciado, por si só, parece vazio e inócuo, aparentemente feito como uma referência vaga ao livro famoso de Anna Tsing (ela, inclusive, é parte de um grupo que apresenta um documentário na exposição). Como qualquer signo, uma obra de arte é polissêmica. A obra de Lopes pode ser apreendida como sendo apenas uma vontade dessas que dizemos para nós mesmos como mera repetição, um pequeno mantra para sentirmos que não fomos completamente cooptados. Pode ser também um dizer espectral, uma mensagem que, um pouco camuflada na parede branca que sustenta a obra, traz consigo o presságio, ou a certeza, de que as coisas, mesmo as mais nefastas como o capitalismo, chegam ao fim. Mas mais do que profetizar ou desejar isso, é importante pensar como e por quem isso vai ocorrer.
Em uma conversa com um antropólogo e ativista dos Estados Unidos, perguntei como pensar a agência de reagentes químicos cancerígenos (e virtualmente eternos) produzidos pelas refinarias as quais ele se opõe em sua militância. Entendendo acertadamente como uma questão latouriana (ou Tsingiana, ou Harrawayana), ele me respondeu que conceitos como o de Latour ou Tsing às vezes têm efeitos deletérios para uma luta política. Isso porque ao propor a imaginação para a vida por vir das ruínas do capitalismo, Tsing acaba apagando a luta presente, concreta, daqueles que são diretamente afetados pelo cataclisma em curso. O futuro passa a ser um fetiche e um motivo de resignação, afinal, microplásticos e restos radioativos não apenas estão aqui até o fim da civilização, como continuam sendo produzidos, inclusive com a justificativa de mitigar a emissão de gás carbônico. Que o capitalismo irá acabar, isso não há dúvidas. O que importa é se ele morrerá de barriga cheia, com seus sujeitos resignados e contemplativos sobre o futuro que resta, ou estrangulado, com mundos de alianças a serem costuradas.


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