Por Gustavo Denani
Linhas diagonais, quadrados, cores terrosas. Essas foram minhas primeiras impressões enquanto me aproximava de dois trabalhos expostos no 31o Salão de Praia Grande. Mais de perto, nota-se uma área ruidosa: trata-se de uma colagem de vários QR codes. A superfície em nada trivial pede que ela seja olhada com mais cuidado. As cores terrosas são de fato pigmentos de terra. Não por acaso, os trabalhos fazem parte da série “A terra vale o que ela produz”, de Marilia Scarabello.
A princípio, esse título parece remeter aos fisiocratas. Para essa escola econômica, a terra, pela produção agrícola, é a fonte da riqueza. Qual seria a riqueza na qual a terra da série remete? Em #31, uma camada de QR codes é um sedimento inferior do solo, como se estivesse à espera de ser extraída. Já em #32, há uma divisão diagonal demarcando um limite entre terra e vazio. O lado terroso possui um sulco retangular, enquanto que a parte vazia possui um quadrado, como se fosse extraído da terra. Esse quadrado contém quatro quadrados, cada qual com uma textura diferente, sendo uma delas o QR code.


#31 e #32, retirados do Instagram da artista: https://www.instagram.com/marilia_scarabello/
Descrever o que está posto em tela, no entanto, não basta para articular um sentido entre sua superfície e seu título. “A terra vale o que ela produz”, tanto em termos de título e série, convida o observador a refletir sobre a matéria que a compõe. Mais do que elementos heterogêneos, o material usado tem distinções fundamentais. Terra existe enquanto uma granularidade resultante de elementos físicos e biológicos. Ela atesta um passado profundo que ultrapassa a temporalidade humana. O QR code, por sua vez, é de certa forma uma antítese da terra no que seu próprio nome significa: Quick Response code. De existência efêmera, um QR code funciona como mero acesso a um lugar online, para ser esquecido logo em seguida. Além disso, diferentemente da heterogeneidade da terra, um QR code é estruturalmente simples e binário, com blocos brancos ou pretos feitos para serem decodificados por máquinas. Scarabello coloca duas temporalidades, duas formas de existência mutuamente estranhas, em oposição.
Mas há algo mais além de uma tensão no arranjo dos trabalhos. As texturas que os compõem não têm uma diferenciação na superfície, mas partilham do mesmo plano. Como escrevi acima, o QR code poderia ser um estrato do solo. Voltemos então ao título da série. Se produção é a condição de valor da terra, e se o QR code é apresentado como uma camada geológica, o que ele produz? Ou ainda, como pensar a cadeia de produção da qual ele faz parte?
Supondo que não esteja coberta de concreto e asfalto, terra é algo de tangibilidade relativamente trivial. É também o lugar por excelência de onde se imagina a subsistência humana: é dela que cresce o alimento. Sobretudo, é sobre ela que ficamos de pé, é nela que construímos os lugares que nos abrigam, e é ela própria que serve de matéria prima para construí-los. Um QR code, por sua vez, evoca experiências distintas, por vezes abstratas. Para um indivíduo sem smartphone ou sem interesse em usá-lo, QR codes são algo como um ruído para o olho humano. Esse ruído, no entanto, ao conectar a presa fisgada por ele ao serviço que o utiliza, pode ser fonte de valor. Em outras palavras, se a terra remete a um valor de uso tangível às necessidades básicas humanas, o QR code é o signo de um valor especulativo, do fluxo de informação.
Se o valor da terra é concreto e o do QR code é especulativo, o contrário também é verdadeiro. Os empreendimentos imobiliários dos últimos anos são exemplo disso, de modo que o valor do metro quadrado, especialmente em centros urbanos, não se mede nos termos de produção agrícola tal como postulavam os fisiocratas, mas pela produção de juros para os bancos que os financiam, lucros exorbitantes para as incorporadoras, e aluguéis para os que não têm acesso à casa própria. Nesse sentido, o valor que a terra produz é mais fictício que os fluxos de informação de um QR code. De fato, os QR codes que compõem os trabalhos foram coletados pela artista a partir de anúncios de lançamentos imobiliários. Dessa forma, ao colocar em relação os grãos do digital e do geológico em sedimentos, “A terra vale o que ela produz” provoca o observador pensar sobre os sedimentos que sustentam nossa vida, assim como os sedimentos que nos soterram, mesmo sem sabermos.


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